Exposição de Menezes Ferreira prova que nem todos os militares são sisudos
Soldados alinhados, mas em completo desalinho, conversas de caserna em tiras de BD, caricaturas da opulência e ilustrações bem-humoradas. São as crónicas desenhadas do militar Menezes Ferreira, que retratou com ironia personagens e cenários da Primeira Guerra Mundial.
“De republicano convicto passou a nacionalista, depois de uma certa desilusão com a República”, explica João Alpuim Botelho, coordenador do museu. “E essa mudança é plasticamente nítida na sua obra”, continua, dando conta dos vários pretextos para a realização da mostra: “Além da efeméride, pesou o facto de ter sido um artista do primeiro modernismo, um dos herdeiros de Bordalo Pinheiro e amigo do seu filho Manuel Gustavo, com quem fundou a Sociedade de Humoristas Portugueses.”
Na última vez que os trabalhos de Menezes Ferreira foram expostos, o calendário assinalava o ano de 1935. O autor, natural de Lisboa, viria a morrer no ano seguinte, com 47 anos. Dizia o próprio: “O meu natural bom humor tem-me desviado até hoje – o diabo seja surdo – de todas as ideias pessimistas (…) que possam abalar a minha firme convicção no rejuvenescimento de Portugal.” Talvez por isso nunca tenha retratado a dimensão mais bárbara da guerra e no final da sua vida, curta, se tenha concentrado numa faceta pedagógica e formativa junto dos mais novos.
O mais emblemático dos seus livros para a infância terá sido João Ninguém – Soldado da Grande Guerra, um protagonista que não é herói nem anti-herói, antes um homem comum que, como o autor, passou pela guerra e nela sofreu, mas não se deixou derrubar.
Menezes Ferreira foi um cronista militar e, como se escreve no texto de apresentação da mostra, não se tratou de um “panfletário antibelicista”, mas de um “humorista/modernista pedagógico”. Em 1923, escreveu o conto O Fusilado, a sua obra mais literária, e no ano seguinte A Viagem Maravilhosa de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, “o trabalho mais elaborado na iluminura e na paginação”. Em 1927, edita À Luz do Lampadário, terminando a sua bibliografia com As Tradições do Colégio Militar, em 1933.
Todas as fases da vida deste militar bem-disposto e irreverente se reconhecem na selecção que o comissário Osvaldo Macedo de Sousa fez do espólio de João Guilherme Menezes Ferreira e que propôs ao Museu Bordalo Pinheiro, local óbvio para a exposição que foi inaugurada na quinta-feira, dia 11 Setembro, data que marca os cem anos do seu embarque para Angola, como adjunto do Comando do Destacamento.
Tropa fandanga…
Divertido, João Alpuim Botelho detém-se frente à imagem Sargentos da Revolução (1912) e diz: “Veja esta tropa fandanga...” Nove militares apresentam-se lado a lado, cada um de seu tamanho, uns mais barrigudos que outros, barbas por fazer, postura incorrecta, pernas tortas. O do meio segura a bandeira com lassidão. “Nem é preciso legenda”, continua o coordenador do museu, enquanto nos vai guiando pela exposição, na altura ainda a ser montada, sob a orientação André Maranha (desenho da exposição) e de Pedro Braga (investigação e gestão de colecção).
Um trabalho invisível de que poucos se apercebem quando chegam a uma exposição, mas que orienta o nosso olhar e põe a descoberto o que mais se valoriza. “Por mais isenta que seja a história a revelar, há sempre uma escolha nossa. Mostramos os nossos gostos e desgostos”, diz André Maranha, que quer reforçar o facto de ser a primeira vez que se reúne todo o trabalho de Menezes Ferreira num só espaço e tanto tempo depois do seu desaparecimento. “Os historiadores de arte nunca tiveram acesso a tudo isto.”
Fala com entusiasmo e vai dando instruções para que se instale a figura do Pai Natal numa campânula transparente no piso superior da galeria. “Faz parte do livro Um Conto de Natal. Uma história para crianças, a puxar ao sentimento”, descreve, informando que o livro ficará por perto, acompanhado de recortes de imprensa divulgados na altura da sua publicação. Este Pai Natal de cartão continua ainda hoje a fazer parte das decorações de Natal da família.
Entretanto, Pedro Braga obriga-o a decidir a melhor localização de um quadro onde se vê um barco, um canhão a disparar e muitos ícones nacionalistas. “É a fase pós-entusiasmo republicano”, vai explicando o coordenador do museu, entre o ruído de berbequins e martelos.
Segue-se um périplo pelos trabalhos gráficos para edição, com capas de revistas muito eficazes em termos de comunicação, mas em que se destaca o livro A Viagem Maravilhosa de Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1924). A mancha gráfica, a escolha do tipo de letra, a entrelinha, a composição dos elementos na página, tudo converge para uma legibilidade e harmonia que surpreende quando se olha para a data de produção.
Durante a visita do PÚBLICO, faltava ainda pôr nas paredes algumas fotos de família. Numa delas, sem moldura, vivia-se um ambiente de festa. Era um baile de Carnaval, com a data de 1929. No vão da escada e numa parede junto ao tecto, dois painéis do artista decoravam a sala. Figuras carnavalescas, com a personagem Pierrot em evidência. A foto era, naturalmente, a preto e branco. Mas foi-nos garantido que as peças originais estariam expostas na galeria. “Se calhar, também podíamos fazer um baile”, diz João Alpuim Botelho, à despedida. E com humor.