Um realizador para os clássicos
João Botelho continua a propor um reencontro, uma relação, com textos essenciais para uma identidade colectiva. Ou uma forma, não populista, de chegar a um cinema popular.
E isso, concluía Hitchcock, era impossível filmar ou “adaptar”, como não se “adapta” uma escultura ou um quadro, coisas que são o que são na sua materialidade intrínseca e nela encontram toda a razão de ser. Na visão de Hitchcock, um texto clássico da literatura era um “objecto”, intransponível, inadaptável e inamovível. Histórias por histórias, mais valia portanto filmar Daphne du Maurier do que Dostoiévski.
A resposta de Hitchcock para o problema da adaptação não é, evidentemente, a única possível dentro do universo, tão cheio de variações e distinções, das adaptações cinematográficas de grandes títulos da literatura. Mas é talvez a que melhor explica, por um lado, a profusão de filmes medíocres arrancados a grandes livros e de grandes filmes arrancados a livros medíocres, e por outro lado a dimensão intimidatória que a literatura, a literatura “a sério”, exerce sobre o cinema.
No cinema português, que tem, bastante injustamente, a fama de ser um “cinema literário”, o momento determinante na relação com os clássicos é o ano de 1978 e o monumental Amor de Perdição de Manoel de Oliveira. Camilo, assim como Eça, já tinha conhecido diversas adaptações em filmes portugueses, feitas desde o tempo do mudo, nenhuma delas particularmente notável, bem pelo contrário. Quando Oliveira pegou no livro de Camilo, fê-lo justamente a partir do ponto que Hitchcock dizia ser impossível ultrapassar: encontrando a maneira mais aproximada possível de filmar “o livro”, o texto, e não apenas “a história” que ele conta, uma maneira de ter um olhar sobre “a literatura” mais do que só a ilustração de uma narrativa.
A brecha
O Amor de Perdição de Oliveira abriu uma brecha no cinema moderno português, e dentro dele na relação com a literatura. Um dos que passaram por essa brecha, para além do próprio Oliveira, foi João Botelho. Os Maias é apenas o segundo Eça realmente decente do cinema português – pelo primeiro foi preciso esperar até 2009 e… Manoel de Oliveira, com as Singularidades de uma Rapariga Loura. Mas no ADN do cinema de Botelho está, desde cedo, uma relação com os textos literários. Conversa Acabada, de 1980, evocava Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, num registo, hierático digamos, que justamente trabalhava o relevo do texto (e que é, ainda, o filme de Botelho que mais reflecte, para além da influência de Oliveira, a de Straub e Huillet e do seu cinema construído sobre textos sempre dados como “matéria”). Ou, ainda nessa década, Tempos Difíceis, em 1988, que transpunha Dickens para o contexto da ruralidade portuguesa evocando no mesmo passo o mais dickensiano dos cineastas, o americano David Wark Griffith.
Pelas suas particularidades, sobretudo estilísticas, esses filmes vivem, na filmografia de Botelho, com uma identidade própria que talvez não seja imediatamente “comunicante” com outras adaptações posteriores. De facto, parece haver, desde 2001, ano em que o realizador adaptou o Frei Luís de Sousa (em Quem és Tu?), um retorno periódico de Botelho a textos literários: O Fatalista, a partir de Diderot, em 2005, o Livro do Desassossego de Pessoa em 2011, agora Os Maias (passando por cima de A Corte do Norte, onde se adaptava Agustina, mas onde tudo tinha uma natureza muito particular). O que é interessante em Os Maias, para além das questões de adaptação, onde Botelho tenta reencontrar, com razoável sucesso, o espírito e a fluência de Eça de Queirós, é a abertura, chamemos-lhe “popular”, que ele procura, e que vem muito na sequência do caminho iniciado com o filme de 2001 baseado em Garrett.. Contra as ideias mais frequentes, e frequentemente mais degradadas, de um “cinema popular” dependente de modelos televisivos, Botelho continua com Os Maias a propor outra coisa: um reencontro, uma relação, com textos essenciais para uma identidade colectiva. Ou uma forma, não populista, de chegar a um cinema popular.