Levem o caso BES para Aveiro
Fosse qual fosse o desfecho do processo, o modo como investigadores, procuradores e juízes actuaram suspende a tradição dos grandes casos judiciais que acabaram em histórias mal contadas. Com condenações ou absolvições seria sempre de elementar bom senso reconhecer que quem o conduziu não cedeu a pressões, não caiu na tentação do protagonismo, não se deixou intimidar pela bateria de incidentes dilatórios. O trabalho que todos desenvolveram deixa transparecer seriedade e empenho. Tire-se do rol altas figuras da nomenklatura judicial, como Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento, e pode-se dizer com propriedade que, desta vez, a máquina da Justiça esteve à altura das suas responsabilidades.
E esteve-o em primeiro lugar porque nos foi dado a perceber que na condução do processo houve zelo, profissionalismo e preocupação com o bem comum - o que estava em causa, vale sempre a pena sublinhar, era um sistema de interesses que alegadamente se servia de recursos nacionais para alimentar uma suposta rede de tráfico de influências. Quando se fizeram as primeiras buscas já os agentes judiciários tinham em seu poder um enorme rol de provas. As informações recolhidas ficaram circunscritas a uma pequena equipa de investigadores e magistrados e jamais alimentaram fugas de informação estratégicas para os interesses de alguma das partes. As diligências fizeram-se com sequência, lógica, discrição e eficácia. Uma juíza suspendeu a sua convalescença num hospital para evitar a anulação do processo. O magistrado que o instruiu continuou a segui-lo até à leitura da sentença. O juiz que presidiu ao colectivo deu sempre uma enorme imagem de serenidade para o exterior e não se deixou prender nas complexas teias de incidentes processuais com que, compreensivelmente, a defesa procurou torpedear o caso – chegou a inclusive a multá-los pelos incidentes que considerava injustificados. Um processo com 32 arguidos, quase 400 testemunhas e 200 sessões ficou fechado em menos de três anos.
Toda esta sequência contraria o festim de labirintos processuais ou de guerras de protagonismo com que tantas vezes os departamentos centrais de investigação e acção penal nos brindam. Se os corredores das mais altas instâncias do Ministério Público parecem habitados por figuras que parecem mais adaptadas às colunas sociais do que às salas dos tribunais, em Aveiro viram-se investigadores anónimos mas competentes e com carreiras reconhecidas, como Teófilo Santiago. Viram-se procuradores corajosos e empenhados (Carlos Filipe e João Marques Vidal) e viu-se juízes capazes de focar o processo no que é essencial: a procura da verdade e da Justiça.
Para que tudo corresse pelo melhor faltou apenas que o episódio das escutas de Sócrates não tivesse merecido o desfecho que o então procurador-geral da República e o presidente do Supremo Tribunal lhes concederam. Seria bom que, como defenderam os procuradores de Aveiro, se levasse a investigação até ao limite e se esclarecesse o que houvesse a esclarecer, fosse no caso Face Oculta ou num processo autónomo. A forma nervosa e tantas vezes hesitante como o apêndice das escutas foi tratado, levando até Pinto Monteiro a inventar uma "extensão procedimental" para as conservar num limbo inacessível aos jornalistas e aos cidadãos, destoou em tudo da forma serena e segura como os magistrados de Aveiro se comportaram.
Foi a única nódoa num processo onde a Justiça mostrou que, apesar de todos os problemas com os códigos e com todas as limitações de meios, ainda é possível acreditar que casos complexos de corrupção que envolvem figuras influentes podem ser investigados, produzir acusações, chegar a julgamento e acabar com condenações como em qualquer sistema de justiça normal e moderno. Num tempo com tantas e tão legítimas dúvidas sobre a capacidade da Justiça, é bom admitir que nem tudo está perdido. O Face Oculta abriu uma possibilidade. Que impõe perguntas. Se em Aveiro a Justiça funcionou, por que não funciona em Felgueiras, em Lisboa ou no Porto? Para o futuro, fica um exemplo. Para evitar que o interminável tempo de espera com os casos do BPN e do BPP se repita no escândalo do BES.
2- Os debates no Parlamento esta semana deixaram no ar uma sensação de fim de ciclo. Quem esperava um regresso da política temperado pela energia das férias de verão, desenganou-se. O tempo nublado de Agosto, ou talvez as sequelas do caso BES, trouxeram mais do mesmo ou ainda pior. Do lado do Governo lá se ouviram as mesmas promessas de que a consolidação orçamental é para manter. Lá se voltou ao cansativo jogo de remissão de culpas pelos males do país e do mundo para o PS ou aos já enjoativos, porque hipócritas, apelos ao consenso em reformas como a do sistema de pensões. A oposição mais à esquerda ajuda à letargia, acusando o cansaço normal de quem apregoa a iminência de uma catástrofe que teima em não acontecer. E o PS vive por estes dias com mais enlevo a guerra civil entre as facções Costa e Seguro do que propriamente a preocupação em estudar o orçamento rectificativo ou que quer que seja de profundo e exigente.
Este estado de ânimo serve apenas para provar que no próximo ano, até às eleições, Portugal vai viver num compasso de espera. O Governo está esgotado após três anos da mais difícil governação depois do 25 de Abril, quer tréguas na austeridade e já não tem energia nem vontade para reformar qualquer área que, como com o mapa judiciário, implique mais resistência do que a do país interior velho e desertificado pode oferecer. Pode ser que Passos ainda seja capaz de se lembrar dos velhos tempos em que prometeu ir além da troika e evite este clima de lassidão. Não é que se queira mais impostos ou mais cortes de salários; o que se lhe pede é que trave essa insuportável derrapagem nas despesas públicas apenas porque, agora, o Estado até tem margem orçamental para a enquadrar nas metas do défice. Mantendo-se tudo como está, a política portuguesa arrisca tornar-se “prozac”, uma prescrição pouco recomendável para quem precisa mais do que nunca de nervo e de uma estratégia para enterrar de vez o ciclo da troika.