Brasões coloniais: preservar propaganda ou suprimir um testemunho histórico?

Sabemos olhar para um jardim como património? Conquistámos já distância para lidar com o passado colonial português? Paisagistas, artistas e sociólogos discutem a polémica em torno do anúncio de supressão dos brasões coloniais do Jardim do Império, em Lisboa.

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Jardins de Belém Rui Gaudêncio

“Em Portugal, a paisagem é olhada de forma romântica, como um fundo que está lá atrás e não como o espaço em que vivemos. Os jardins, em geral, são considerados espaços expectantes e vazios, quando, na verdade, são densos de significado”, diz a paisagista Aurora Carapinha.

Segundo os especialistas na área, esta é a raiz do problema em torno da polémica intenção de supressão dos brasões coloniais do Jardim da Praça do Império, na zona de Belém, em Lisboa, confirmada há uma semana pelo vereador do Ambiente Urbano, Espaços Verdes e Espaço Público, José Sá Fernandes. 

Originalmente talhados em flores e buxo, os oito brasões identificam simbolicamente as antigas colónias portuguesas designadas pelo Estado Novo como “províncias ultramarinas”. Fazem parte de uma sequência de 32 brasões que identificam ainda as capitais dos distritos administrativos continentais e ordens como a de Cristo e Avis.

Hoje, o conjunto está em más condições de conservação, com o recorte e o cromatismo originais a tornarem-se indistintos. Sá Fernandes propôs-se recuperar parte dos brasões – todos menos os ligados ao passado colonial português. Fez saber considerá-los “ultrapassados”, presenças que “não faz sentido manter”.

Em certos sectores, o argumento poderá até ser aceite como válido. É aceite por historiadores como Fernando Rosas, para quem “não faz nenhum sentido preservar [os oito brasões coloniais], a não ser por propósitos ideológicos passadistas”. No entanto, para paisagistas e outros agentes da Cultura, há outras dimensões a ter em conta.

“Um jardim é quase como uma língua”, contrapõe Aurora Carapinha. “O desenho daqueles [oito] brasões não vale por si. São elementos de composição de um conjunto. Imagine que tem um tapete persa ou de Arraiolos e não gosta de vermelho. Tira esses pontos? E depois? O que acontece à composição de conjunto?”

Sobre um plano inclinado, os 32 brasões compõem uma faixa ornamental semicontínua. Uma moldura a enquadrar o plano rebaixado do qual se ergue a Fonte Monumental, que serve de centro ao jardim com os seus cerca de três hectares e plano geral de um dos pioneiros do modernismo nacional: Cottinelli Telmo, o arquitecto-chefe da Exposição do Mundo Português, de 1940, comemorativa dos 800 anos da Independência de Portugal e dos 300 da Restauração.

A intervenção ornamental em mosaico-cultura não fazia parte do plano original. Foi acrescentada apenas nos anos 1960. Mas teve um autor, guarda a memória de um contexto histórico e perfila-se claramente como expressão plástica de um tempo e da sua mundivisão. São motivos para a manutenção e não a supressão, defende João Gomes da Silva, sublinhando que a natureza – perecível ou não – de uma obra não pode servir de argumento para a relevância da mesma: “Plantas, pavimentos, luzes de fontes – são partes de uma obra. Anular uma parte faz o conjunto perder significado e sentido.”

Mais, diz este especialista: “[O mosaico de brasões] corresponde a uma obra de época que procura explicitar uma determinada ideologia, tem um sentido político evidente e, por isso, permite-nos ler determinado período da história. São símbolos que representam a unidade ideológica de Portugal como conjunto de espaços continentais e ultramarinos. É o conjunto que afirma a ideia de Portugal como foi visto pelo fascismo.”

O conjunto dos brasões e da totalidade do Jardim do Império, mas não só: o complexo do jardim em leitura conjunta com toda a sua envolvente.

Nos anos 1940, o Jardim da Praça do Império veio inscrever-se na prevista zona nobre de Belém, uma zona monumental entre dois símbolos maiores de afirmação da identidade nacional: o Mosteiro dos Jerónimos, a norte, e o Padrão dos Descobrimentos, a sul. Nas últimas décadas, o Centro Cultural de Belém, a ocidente, e o novo Museu dos Coches, a oriente, vieram juntar-se a esse articulado.

“Tudo isto tem um significado”, sublinha João Gomes da Silva, “podemos gostar ou não, mas tem um significado.”

Entre outros aspectos, o paisagista chama a atenção para o facto de a faixa ornamental em mosaico-cultura se articular com as duas esferas armilares metálicas e o pavimento trabalhado em torno do Padrão dos Descobrimentos, com uma rosa-dos-ventos que, tal como os brasões, surgiu em 1960 para as comemorações do quinto centenário henriquino.

É uma provocação: “Também se demolia, então, o Padrão dos Descobrimentos. Toda a plataforma de pedra faz uma representação do Mundo Português, que é a de um certo momento... Historicamente, temos de pôr o Padrão dos Descobrimentos num mesmo plano que o conjunto dos brasões.”

A própria Praça do Império – como tantos outros pontos do país, entre cidades, vilas, bairros e ruas – tem inscrita na sua toponímia a mundivisão do Estado Novo. “Era a visão do regime e de uma determinada ordem política que durou décadas. Acabou. Deveríamos ter distância para lidar com essa história. Não é uma questão de adesão ideológica ou saudosismo”, conclui João Gomes da Silva.

Ministro do Ultramar durante o Estado Novo, o jurista, estadista e sociólogo Adriano Moreira é tão taxativo em relação à supressão dos brasões como em relação à recente transformação em condomínio de luxo da antiga sede da PIDE/DGS na Rua António Maria Cardoso, em pleno coração do Chiado: “A história dos países não se recebe a benefício de inventário e, por isso, não se nega aquilo que faz parte da nossa história. Eu não escolhi nascer em Portugal, não escolhi a história anterior do meu país, mas não quero que a apaguem. Daqui a 50 anos vamos apagar a placa com os nomes dos mortos da guerra do Ultramar? Não podemos pensar numa coisa dessas...”

Na verdade, por todo o mundo, em momentos de crise e profunda transformação sociopolítica, símbolos do passado vão sendo apagados por sucessivos grupos sociais dominantes. Ao longo de toda a história, símbolos impostos como positivos num momento passaram, no seguinte, a ser lidos como sombras a rasurar. Por outro lado, a história das cidades é também ela de constante mutação. E quase sempre que se intervém anula-se – quer uma presença quer um vazio. O problema é distinguir entre o que vale como inscrição e o que não vale, entre aquilo que da história queremos manter ou descartar. Motivo pelo qual, em relação aos brasões coloniais, se aponta a Sá Fernandes a ausência de um debate prévio, de uma decisão informada e de um projecto culto e consistente – ao invés de uma decisão “casuística”.

“O assunto dito dos ‘brasões’ parece emergir como uma intervenção pontual e casuística à qual se associa uma causa ideológica. No entanto, esta não será a estratégia programática adequada a uma intervenção num jardim histórico sujeito aos efeitos do tempo e do uso há mais de 70 anos”, diz Teresa Andresen, antiga directora do Parque de Serralves. Apontando o caso do Jardim da Cordoaria, no Porto, “apagado de forma quase irreversível, esta especialista diz que “seria desejável discutir previamente a estratégia da Câmara Municipal de Lisboa para a conservação e recuperação do seu património paisagístico e, em particular, dos seus jardins históricos”: “Esta seria uma grande oportunidade para um debate sério, relevante, abrangente e integrador das dimensões técnicas e políticas que esta temática reclama.”

Aurora Carapinha e João Gomes da Silva dizem o mesmo. Na verdade, vão mais longe, afirmando poder até vir a concluir-se que os brasões não são para manter, mas defendendo que essa decisão tem de advir de uma discussão, resultando de um conceito e projecto mais vasto e completo de intervenção no jardim. “Estamos a falar de uma escultura viva. É património vivo”, sublinha Aurora Carapinha.

Ambos os especialistas concordam que, formalmente, a faixa de brasões não é sequer uma intervenção especialmente interessante. Diz Aurora Carapinha: “Em Portugal não podíamos ter os jardins franceses ou ingleses. São franceses e ingleses. Os nossos correspondem à forma como a cultura portuguesa entendeu as dinâmicas dos sistemas naturais e à relação que enquanto comunidade estabelecemos com eles. Os nossos jardins são sempre mais simples, menos plásticos, mais rudes e rugosos, marcados pela beleza dos próprios sistemas.” Por isso mesmo, diz a paisagista, “não há nada mais estranho aos jardins portugueses do que os brasões podados”, como os que se viam e ainda vêem em cada capital de distrito, junto às câmaras municipais. “Representam uma importação de modelo.” Mas, também por isso, “têm e contam uma história”.

Os brasões coloniais correspondem, diz a especialista, “a uma linguagem educativa e celebratória”.  Do ponto de vista artístico serão pouco interessantes, mas do ponto de vista social e histórico, carregam uma memória importante, conclui João Gomes da Silva.

“O grande drama é que os gestos não são acompanhados de reflexões críticas”, diz também o artista plástico Vasco Araújo, que tem dedicado grande parte da sua investigação e prática artística às questões do colonialismo e pós-colonialismo. “Deixar de ter, abolir, é um apagamento da história. Se desapareceu, porque desapareceu? Porque é que 40 anos depois do 25 de Abril Portugal quer deixar de ter passado?”, pergunta. “Podemos decidir que este discurso [materializado nos brasões] não nos interessa. Nem sequer acho que este apagamento seja forçosamente mau, mas tem de ser feito de forma crítica. As ervas estão a crescer? Não há dinheiro para manter? Esse discurso é que não é válido.”

Estas declarações foram feitas ao PÚBLICO nos últimos dias da semana. Entretanto, ontem, “no seguimento da polémica” em torno da supressão dos brasões, a Lusa publicou uma notícia em que se faz saber que, “até ao final do ano”, a Câmara Municipal de Lisboa lançará um concurso de ideias para a renovação do Jardim do Império.

Nuno Domingos, sociólogo, co-organizador de Cidade e Império. Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Pós-Coloniais (Edições 70), concorda com a urgência do debate. “Os símbolos históricos, numa sociedade viva, devem ser discutidos. O que é o património? O que é a memória? [Em Portugal] somos de uma timidez incrível – só agora começamos a levantar temas que outros países há muito tempo têm resolvidos”, diz. Ressalva também, no entanto, considerar “assustadora” alguma da defesa da manutenção dos brasões.

Em Belém, para além de uma presença formal cuja apreciação estética é “legítima”, existe “um espaço de propaganda anacrónica”, defende. Na sua opinião, seria necessário criar na mesma zona uma camada de contra-narrativas, de leituras críticas que ofereçam informação mais completa e complexa sobre as realidades e implicações do passado expansionista e imperial português.

É esta a opinião, também, da antropóloga Elsa Peralta. Para Cidade e Império..., que organizou com Nuno Domingos, a investigadora fez um estudo alargado de toda a zona ocidental lisboeta. Correspondendo a “uma visão construída ao longo do tempo e conforme diferentes grupos sociais reclamaram espaço e voz”, toda a zona de Belém é “um espaço muito complexo e que suscita um vasto conjunto de afectos colectivos”, diz a antropóloga. É também “um espaço pouco profícuo do ponto de vista da crítica pós-colonial em relação ao passado imperial português”, defende.

Na opinião da investigadora, em vez de um Museu dos Descobrimentos, seria importante ter, antes, em Belém, um Museu da Escravatura. “Falta um espaço de auto-reflexividade relativamente não só aos benefícios como também às responsabilidades históricas que temos. Falta esse espaço em Belém, eventualmente coexistindo com todos estes ornamentos que fazem parte da história patrimonial. As sociedades evoluídas têm capacidade de fazer a sua auto-análise. É o que reivindicaria para Belém.”

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