Fado de um azul Celestial
91 anos e uma vida como já não há. Podia não ter sido artista de variedades, não podia não cantar. Canta desde sempre. Desde que a mãe, que tinha a voz mais bonita do mundo, lhe cantava o folclore da Beira. (Para se ter uma ideia da voz da mãe, pense-se na voz de Amália.) É uma criatura luminosa, delicada. O nome, de que não gosta, vai bem com ela. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro.
Fiquei a pensar na injustiça que é quando olham para Celeste Rodrigues, apenas, como a irmã de Amália, em encontros como aquele que tivemos e com os quais aprendeu a viver desde o começo. No espaço que teve de conquistar para ela. Celeste é uma fadista maravilhosa (ouçam a Lenda das Algas na versão original e sintam a frescura triste daquela voz), uma referência para a nova geração. Quando fez 90 anos, o cineasta Bruno de Almeida fez-lhe um vídeo de presente e chamou alguns dos seus admiradores para assistir. Aldina Duarte, Camané, Carminho ou Gisela João estavam lá.
Mantém-se no activo.
Esta entrevista aconteceu num domingo à tarde e foi filmada pelo neto, o realizador Diogo Varela Silva; o filho deste e bisneto de Celeste, Sebastião, fez de assistente de realização. Têm uma relação amorosa e cúmplice a que comove assistir. No final, comentávamos como vai ser daqui a 20 anos, quando os seus bisnetos a virem contar uma vida, a partir desta gravação. Foi por isso que se filmou Celeste sob uma luz de Verão. A pensar naqueles que um dia vão saber como a felicidade lhe ficava bem.
Começamos, muito lá atrás, pelas canções que cantava quando descascava ervilhas?
Cantava canções da Beira que a minha mãe me ensinava, Milho Grosso. E tudo o que ouvia aos ceguinhos na rua.
Que tipo de coisas cantavam os ceguinhos?
Fado. Foi aí que ouvi fado pela primeira vez. Com alguém a tocar acordeão ou guitarra ou concertina. Tinha sete ou oito anos. E ouvia nas grafonolas. Antigamente, havia a coisa dos piqueniques. Em vez de jantarmos em casa, armávamos tudo e íamos para o campo. Estava sempre alguém com grafonola. Nós não tínhamos.
Isso ainda no Fundão ou já em Lisboa?
Cá, em Lisboa. Vim com cinco anos.
Ainda se lembra de episódios do Fundão?
Só me lembro de quando fui numa procissão vestida de anjo. Eu achava o vestido lindo!, branco com asas. Contava a minha mãe que a cada pessoa que eu encontrava dizia: “Olha aqui o meu vestido tão lindo!” E na igreja, tinha amêndoas no colo, levantei-me e as amêndoas caíram por ali abaixo.
É uma imagem feliz, a que associa ao Fundão.
Muito feliz. Outra imagem: a de o meu pai a tocar na banda, a dar a volta à cidade. E, numa noite de calor, a minha mãe pegou nos filhos e fomos dormir para o alpendre da igreja. Uma aventura. Eram sete na altura.
Conte-me a história da família, que não a sei. Morreram crianças?
A minha mãe teve cinco rapazes e depois cinco raparigas. Um rapaz morreu à nascença, outro morreu com 18 meses e outro com dois anos e meio. E morreu uma rapariga aos seis anos e outra aos 16. Portanto, ficámos cinco.
Era um tempo de alta mortalidade infantil.
E sem saber porquê. “O teu irmão morreu com ataques.” Sei lá que é isso de ataques.
Como é que isso era vivido na família? Era menos traumático, apesar de tudo, do que é hoje?
Não. Era muito. Eu deixei de ser religiosa por causa da morte da minha irmã. Ela tinha seis, eu tinha nove. Estava a pedir por ela, na igreja, quando o meu irmão veio ter comigo e me disse que ela tinha morrido. Nunca mais acreditei em nada. Deus, Pai Natal, acabou aí. Tenho impressão de que era mais violento do que agora, porque éramos mais unidos. Também não tínhamos mais nada — a não ser uns aos outros.
Como é que se chamava essa sua irmã?
Maria dos Anjos. Nome horroroso. A minha mãe pôs nomes feios às filhas. Maria Odete, Amália, Celeste, Ana e Maria Rosário. Ah, não era Maria dos Anjos, era Maria do Rosário.
É um lapso bonito. Fazendo dela um anjo.
Os rapazes tinham nomes bonitos. A Ana morreu com 16 anos. Era poetisa, escrevia.
É impressionante imaginar uma menina de nove anos que tem essa revolta contra Deus quando sabe da morte da irmã.
É. Nós gostávamos muito uns dos outros. Devemos isso à minha mãe e ao meu pai.
Como é que era a sua mãe?
Uma pessoa fantástica. Tinha uma filosofia muito engraçada. Nunca se deixava abater. Quando tinha dinheiro, comprava-nos queijo. Nós gostávamos muito de queijo, queijo fresco. Dava um quarto a cada um dos filhos. A minha avó dizia: “És desgovernada. Deves dar um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã.” A minha mãe respondia: “Não, não. Ao menos hoje consolam-se.”
A família era pobre. Quão pobre?
Tínhamos carinho. A pobreza: nem dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam, também. Mas não dávamos por essa necessidade. Só havia uma coisa com que a minha mãe sofria: como tínhamos uma casa pequena [no Fundão], quando nascia um bebé, um de nós tinha de ir para casa de um familiar.
Como era a casa?
Era sobreloja, primeiro andar e sótão. Deitaram-na abaixo, infelizmente. Cada vez que ia ao Fundão, ia ver a minha casinha! [Riso] Foi onde nasci. “Se me sair a sorte grande, compro esta casa.”
Até que idade sonhou com essa casa?
Até agora, que fui lá há pouco tempo. Tive um desgosto. Estava habituada a ver a minha casinha, tão linda.
Nunca mais entrou nela?
Não. Via-a por fora e já era muito bom.
De certeza que nunca teve oportunidade, estes anos todos, de comprar a casa?
Não! Nem para comprar uma caixa de fósforos, quase. Não sou como o Tio Patinhas. Nunca liguei ao dinheiro: tenho, gasto. E nunca fui de me preocupar com o dia de amanhã. Como sou muito positiva, penso que amanhã tenho um contrato. Hoje não tenho, amanhã tenho — a minha vida foi sempre assim.
Quis verdadeiramente comprar a casa ou bastava-lhe o sonho da casa?
Quis. Era como voltar à minha infância.
A sua infância foi feliz por causa do amor que sentiu?
Acho que sim. Veja a letra que a minha irmã [Amália] fez: “Não temos fome, mãe, já não sabemos sonhar, já andamos a enganar o desejo de morrer.” Doeu na carne [a privação]? Doeu nada. Dá mais poesia. A pessoa cresce mais depressa.
Foi uma infância sem medos? A nossa sociedade está muito marcada pelo medo.
Nós brincávamos na rua. Sem medo que nos roubassem os filhos. Tem-se mais sonho quando há dificuldades. “Vou juntar para isto.”
Os sonhos eram?
Coisas que a gente gostava de fazer. Viajar. Trabalhávamos no Cais da Rocha e víamos os paquetes, com os passageiros todos.
Está a falar do que o dinheiro podia comprar. Agora, aos 91 anos, sonha com quê?
Oh, tanta coisa! Estou muito agarrada à vida. Mas não me amargura não fazer [tudo o que tenho vontade de fazer]. Já tenho tanta coisa boa... Abrir os olhos e ver esta beleza.
Essa infância maravilhosa teve sempre a música.
O meu pai era músico, tocava muito bem. Trompete, saxofone, clarinete. A minha mãe cantava. Como é que uma pessoa podia estar frustrada? A música enche a vida de beleza.
A voz da sua mãe, como é que era?
Um bocado como a da minha irmã, mais forte. Tinha uns agudos maravilhosos, uns graves sensacionais.
Havia na sua mãe o desejo de ser cantora?
Não. Tinha tanto filho... Pertencia a um rancho e cantava. Chamavam-lhe o “rouxinol da Beira”! Tinha uma voz que se ouvia a dois quilómetros. Nem nós. Nunca sonhámos ser artistas. Nem eu nem a Amália. A gente cantava porque gostava de cantar. Cantávamos nas [festas] dos vizinhos, nos baptizados, nos casamentos da vizinhança. Isto surgiu, primeiro com a minha irmã, porque se enamorou de um guitarrista. E eu porque andava com ela, acompanhava-a. Ainda hoje gosto de cantar. Ando sempre lalalala, por casa.
Que canções estava a cantar hoje de manhã em casa?
Estava a cantar um fado. O fado da andorinha. [Canta] “A manhã é uma andorinha que se esqueceu da viagem...”
Canta para si?
Canto para mim e às vezes para a vizinhança, que diz: “Continue, continue.” É bom cantar, é bom.
Canta fados antigos?
Sim. Fados que criei. [Lenda das] Algas, Saudade Vai-te Embora, Gaivota Perdida. Para recordar a letra.
Como é que era um Natal na vossa casa?
Ah. Tudo sentado no chão, que éramos muitos e não havia cadeiras nem bancos. Se cantávamos? Claro! Sempre as coisas da Beira. Os martírios — como é que lhe hei-de explicar o que são os martírios? É uma coisa que se canta na Semana Santa. Eu cantei, como se fosse uma oração, para um filme de pescadores bacalhoeiros da National Geographic. Faz arrepiar quando as pessoas cantam bem.
Começou em 1945, no Casablanca. Ainda nesse ano fez uma temporada no Brasil com a sua irmã, que já fazia muito sucesso.
E já tinha ido a Madrid. E à Madeira.
Como é que começou a cantar a sério, profissionalmente?
Seis anos depois da Amália. Ela começou em 1939. Eu andava sempre com ela.
Porquê? Era uma espécie de dama de companhia?
A minha mãe dizia que éramos o roque e a amiga. Andávamos sempre, sempre juntas. Conheci a Amália quando tinha cinco anos e ela oito. Ela estava cá em casa dos meus avós e nós no Fundão.
Como é que foi quando a viu?
Eu conhecia-a de fotografia. Ela achou-me muita graça porque eu falava à moda do Fundão. Dizia: “Quero meia rate de açúcar e uma onça de chá.” Fui com ela à mercearia fazer um recado. Também não sabe o que é? Era uma medida que havia naquela altura.
Sempre foram muito parecidas.
Muito. Confundiam-nos na rua. Eu não podia ir a um cinema. Havia as apostas: “É/ não é?” A pessoa sente-se mal. Ainda por cima não era eu.
Já viu que diferença, entre a sua infância e a dos netos ou bisnetos? O Gaspar, aos dez anos...
Aprendeu a tocar [guitarra] de propósito para me acompanhar — disse ele. E acompanha bem. Já viu que fica com cara de guitarrista quando toca?
Fica com uma cara muito séria. Que declaração de amor, aprender a tocar para acompanhar a bisavó.
Faz-me uma ternura. Fiquei comovida.
O que eu queria dizer: se lhes contar aquelas coisas por que passou, têm dificuldade em imaginar.
Eu conto. As dificuldades e as alegrias. Adoram ouvir.
Acham espantoso?
Espantoso? Naquela altura, vivia quase toda a gente assim. Duas guerras... Guerra de Espanha. Era preciso racionamento. E depois a [II] Grande Guerra.
Tinham muita informação sobre as guerras?
Não. Não tínhamos televisão. Rádio, não havia tempo para ouvir. Trabalhava.
No cinema, passavam boletins? Ia ao cinema.
Ia. Com um bilhete de dez tostões, para as primeiras filas. Ficava com uma dor no pescoço. Apanhávamos desenhos animados.
Quem eram os galãs de cinema com quem sonhava?
Tinha uma paixoneta pelo Spencer Tracy no Não há Rapazes Maus. Era tão lindo e representava tão bem!
E o Gary Cooper, lindo e alto?
Não era o meu tipo. Gosto da expressão, do olhar. Impressiona-me mais do que a beleza do homem alto. O meu marido não era bonito. Era interessante, mas não era bonito. O meu primeiro namorado também não era bonito.
Uma expressão melancólica, sonhadora, impetuosa?
Sei lá. Era uma maneira de olhar profunda. Sei lá. Você também... [riso]
Como é que era a expressão do toureiro, o seu primeiro namorado?
Era tão engraçado. Era irmão da Casimira, Mirita Casimiro. Com aquele mesmo nariz. Era parecido com ela, portanto não era bonito.
Sim, mas só com a palavra “toureiro” já se imagina um homem fogoso.
[Riso] Não sabia o que era isso. Tinha 17 anos quando o conheci. Prendeu-me mais pela conversa. A personalidade.
Era uma sociedade muito puritana, o código social era restrito para as mulheres.
A minha mãe é que dizia, não era a sociedade. Não deixava ir ao cinema com um namorado, sozinha. Nem a mim nem à Amália. Tínhamos de levar o meu irmão connosco.
Quanto tempo esteve com o toureiro?
Namorei três e depois estive dez anos.
Não chegou a casar-se com ele.
Zanguei-me antes de casar. Também não vou dizer porquê. Está mesmo à espera que conte porquê.
Como foi recebido pela sua mãe, que punha essas regras todas, o facto de ir viver com ele sem se casar?
A minha mãe adorava-o. Aceitou. Mais do que o meu pai. O meu pai não nos falava, ao princípio. As minhas irmãs adoravam-no também.
Porque é que não se quis casar?
Já lhe disse que não digo a razão. [Riso] Ainda não estava na altura de ele casar, e eu também não, que era muito nova. Não sabia cozinhar. Nunca liguei ao casamento. Não queria ter filhos. Achava que não os saberia educar. (Depois tive a primeira e tive logo a segunda. Ahhh, coisa mais maravilhosa é ter um filho.)
Porque é que não me conta? É porque não quer que os seus netos saibam?
Não. A culpa foi minha. Aquele complexo da menina de Alcântara. Entendi mal uma coisa que ele não fez e devia ter feito. Achei que era porque eu era de outro meio [social]. Eu achei que ele não queria que as pessoas soubessem que íamos casar. Pronto. [Anos depois] esteve doente e fui vê-lo. Já estava separada do meu marido. Ele beijou-me [a mão]. “Sabia que você vinha.” Chamou os médicos: “O grande amor da minha vida está aqui.” Foi chocante. Saber que não me tinha esquecido depois de tantos anos. Sabia tudo o que eu fazia, escrevia-me todos os dias uma carta sem a mandar. Não casou. Eu casei.
Que bela história de amor.
É íntimo. Porque é que o público está interessado na minha história de amor?
Penso que conhecemos muito as pessoas nas suas histórias de amor. Não só com um homem ou mulher, mas no amor de pais e filhos. Normalmente, o melhor das pessoas está nessas histórias.
Tenho uma família linda. Todos me adoram e eu adoro-os.
Recuemos a 1945. Reza a história que foi à Adega Mesquita, cantou e foi contratada para cantar no Casablanca.
Era o empresário da minha irmã, que tinha o Casablanca. É onde é hoje o ABC. Fiquei medrosa. Eu ia lá todos os sábados. Cantava a minha irmã, a Maria Teresa de Noronha, o José António Sabrosa, o Vicente da Câmara, a Lucília do Carmo. A minha irmã dizia: “A minha irmã canta muito bem.” Um dia tive coragem e cantei uma quadra. O Zé Miguel, que estava lá a almoçar, contratou-me logo. Marcou-me ensaios, tratou-me da carteira profissional, anunciaram-me. Quando ouvi o meu nome, não queria entrar no palco. O locutor empurrou-me e lá fui eu. A minha irmã foi minha madrinha, pôs-me o xaile nos ombros.
Ela puxava muito por si, no sentido de a incentivar a fazer?
Não. Só naquela altura. Nunca se meteu na minha carreira artística, felizmente. Senão, eu tinha desistido. Canto à minha maneira, canto as minhas cantiguinhas. Como eu sinto. Nunca a imitei. Tentei fugir à maneira de ela cantar.
Amália era três anos mais velha, cantava há mais tempo e era já reconhecida. Era inibidor para si, com o sucesso dela, começar a cantar?
Não. Nunca pensei nisso. Porquê? Há tantos alfaiates. Eu não tinha de ser como ela. Então, todas as pessoas que cantavam deixavam de cantar.
Sempre achou que ela era...
Ah, o máximo! Achei e continuo a achar, que nunca mais aparece [uma como ela]. São casos. Como a minha mãe: se tivesse sido artista, não apareceria outra igual. Nunca ouvi uma voz tão bonita como a da minha mãe.
No caso da sua irmã, era a voz...
Era tudo.
Era também a maneira como ela se entregava?
As pessoas entregam-se, também. Não é isso. Era tímida e crescia no palco. Tímida e humilde e ficava uma rainha. Tinha bom gosto a cantar.
A Celeste era muito tímida?
Ainda sou. No palco, fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara.
Quando a vemos cantar, parece muito enfiada em si. Como se o mundo cá fora não existisse.
Não existe. Fechar os olhos é realmente uma maneira de estar connosco.
Como é que foi o Brasil? Imagino o deslumbramento.
Eu não era para trabalhar no teatro. Ia para acompanhar a minha irmã. O empresário: “A sua irmã está aqui, canta, porque é que não entra também nas revistas?” Aquilo para mim era uma paródia. O nosso empresário tinha cinco cinemas com sessões contínuas. Corria os cinemas. Chegava atrasada ao teatro. Não sabia representar. E tem de se representar bem. O jeitinho não dá. Tenho uma admiração enorme pelos actores.
O que é que fez?
Uma comédia e uma opereta. Fazia o papel que a minha irmã e que a Hermínia [Silva] fizeram cá n’ A Rosa Cantadeira.
Esteve um ano no Brasil. Mudou-a muito ter estado tanto tempo fora?
Não. Olhe, as duas. Começámos a lembrar-nos do bacalhau, a ter saudades do bacalhau. Ela tinha um contrato sensacional, 200 contos por mês. E eu, 30. Viemos embora. Considero-me uma pedra de Lisboa. Ela também.
O que é que fez a esse dinheiro todo que nem deu para a casinha do Fundão?
Comprei um casaco de peles, de lontra! [Gargalhada] Bem giro. Era o que todas as raparigas naquela altura sonhavam ter.
Ainda o tem? Há pessoas que guardam tudo a vida toda?
Não! Havia de estar cheio de traças. Comprei outras coisas, roupa. Uma vez fui cantar a África, a Cape Town, Cidade do Cabo, não é? Comprei tanta roupa. Ganhei bem. Em 1950, 20 contos por espectáculo. Fiz uma data deles.
Comprava presentes à sua mãe?
Lá fora, não. O meu irmão, sim. Ele jogava boxe e a minha mãe pedia-lhe para deixar. “Vais jogar?”, “Não, não.” Trazia sempre um mimo à minha mãe quando chegava a casa. Uma vez não encontrou mais nada, nem flores, nem bolos, e comprou carapaus!
Que idade tinha quando a sua mãe morreu?
Não me lembro. Não me lembro. Há 50 anos? Há 40?
[O neto, que está a filmar, intervém: “Ela morreu com 95 anos. Nem há 30 anos.”]
Nem a minha irmã, não sei a data em que morreu. Não fixo datas. Nem nomes.
Dizia-se “artista”, “fadista” ou “cantadeira”?
Sou artista de variedades. O meu cartão profissional é de artista de variedades. Antigamente era assim.
Uma vez artista, nunca teve vontade de desistir?
Não. Cantar é óptimo. Adoro cantar.
Cantar e ser artista são coisas diferentes.
Para mim, é a mesma coisa. Quando canto, não penso se sou artista. Estou muito agradecida ao fado, que me deu coisas que eu não poderia ter se não fosse o fado. Não poderia ter viajado. E deu-me uma sobrevivência estes anos todos.
O que é o fado?
O fado são emoções. É como suspirar. É um alívio quando se canta. O meu fado. Não sei se será isso o fado.
Se estiver triste, canta melhor?
Não. Posso estar triste e cantar mal e estar triste e cantar bem. A beleza não é triste. O fado para mim não é triste: é belo. Dá-me uma emoção enorme que gosto de sentir.
Qual é o fado que mais diz quem é?
Música? O Fado Menor. Entra logo dentro de nós.
Que quadras melhor a dizem?
[Riso e pequena pausa; o neto diz: “As que escreveste”] “Sozinha de ilusões naveguei em barco parado no rio, despida de emoções atraquei no cais do meu vazio. Foram levadas pelo vento dos sonhos que outrora tive. Por isso canto no fado aquilo que minha alma vive. Ontem fui, hoje não sou, menos serei amanhã. Sinto que a minha sombra vai fugindo apressada. Está tão cansada de mim e eu dela estou cansada.” É assim que eu sou.
São versos tristes. São, pelo menos, de uma pessoa nostálgica.
Adoro o meu passado. Quando se perde família, amores, a nostalgia da pessoa está aí.
Quais foram os grandes embates da sua vida? Os momentos em que a vida dá porrada.
Ah, a gente aguenta. A vida não pode ser só bom. As perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade. O amor morre. Esse amor de nhanhanhã.
Sofreu muito com o divórcio?
Um bocado. Desilusão. Eu tinha a pessoa [faz o gesto de a pôr nas alturas].
Engraçado não dizer o nome dele. Disse “a pessoa”.
Varela [Silva]. Não gostava do nome: Alberto. Eu chamava-lhe Varela, como toda a gente. Achava que o Varela não era capaz de me fazer [o que fez], visto que, quando nos casámos, lhe disse: “Se algum dia me apaixonar por alguém, digo-te. Se te apaixonares, dizes-me.” Isso eu entendo. Se disser, sou capaz de perdoar. O engano, não gosto. É uma falta de respeito.
Nunca mais teve relação com ele?
Depois de anos [de afastamento], fomos amigos. Fui lá vê-lo a casa no final da vida, quando estava doente. Estive com ele uma tarde inteira a conversar. Telefonava aos amigos: “Não adivinhas quem está aqui...”
Quis despedir-se dele?
Não era bem despedir-me. Não pensava que ia morrer tão depressa. Fui visitar uma pessoa de quem gostava. Tivemos duas filhas. Tenho netos por causa dele. Isso foi a coisa muito boa que me deu, e que tem mais valor do que o engano. Mas na altura fiquei muito magoada.
Que idade tinha?
Quando me casei, tinha 32. Quando me separei..., foi há 40 anos. Vivi 25 anos com ele. Depois do 25 de Abril, fui uma temporada para fora, seis meses. Tive um contrato para o Canadá e os Estados Unidos. Aproveitei. Não havia cá trabalho nem para mim nem para ele. Quando cheguei do Canadá, é que soube que ele andava com ela.
Chega? Estou aqui a assar! Já não tenho mais nada para dizer. [Para o neto] Estás a filmar isto tudo? Gosh!
Gosh? Fala inglês...
Desde os 12 anos. Aprendi com um amigo do meu pai, que nos ensinou. De ouvido. Primeiro alemão. [Ele dizia]: “Ich habe Deutsch gelernt als kleiner Junge. Aber ich habe alles vergessen.” [Eu aprendi alemão enquanto jovem rapaz, mas esqueci tudo.] Das ist wahr. [Isso é verdade.]
Eu nem sei dizer que não sei falar alemão.
Ich kann nicht sprechen. [Eu não sei falar.]
O seu pai devia ser um homem muito aberto.
O meu pai, a minha mãe... Tivemos uns pais formidáveis. Veja que não temos linguagem de bairro, calão. A minha mãe não deixava. Nem aos meus irmãos. Na Beira, não se fala mal. Só há uma palavra que dizem muito: “Filho da dúvida.”
E dizem “filho da dúvida” ou dizem a palavra mesmo?
A palavra mesmo. Vivi no bairro de Alcântara, de varinas e estivadores. Ouviam-se os piores palavrões que há. Uma vez mandei a minha irmã àquela parte — ainda hoje não digo a palavra!, Deus me livre. Era pequena. A minha mãe levou-me à cozinha, partiu uma malagueta e esfregou-ma na língua. Remédio santo. A minha irmã estava a chatear-me, a ganhar-me nas cinco pedrinhas. Como não tínhamos brinquedos, inventávamos jogos. Estava a ganhar-me, a malandra. Disse: “Vai à... Não quero jogar mais!”
É verdade que a sua amiga Beatriz da Conceição, que é do Porto, não diz palavrões à sua frente?
Não. Faz-me uma ternura enorme [que ela faça isso]. Deve ser um sacrifício. Toda a gente diz que ela diz palavrões. Não é fantástico? As pessoas do Norte falam palavrões, mas no fundo não quer dizer nada. Ela também é assim.
Voltemos aos grandes embates. Soube que aos 45 anos deu um rim a uma irmã sua.
Isso é amor. Lá está: gostávamos muito uns dos outros. Os outros meus irmãos também dariam [um rim, se fossem compatíveis ou pudessem].
Era a Odete. Como foi a história?
Teve uma nefrite. Descobriu-se no Rio, onde estávamos as três. A Amália foi cantar e nós fomos com ela. O médico achou que era uma apendicite e queria operá-la. Ela disse: “Não. Vamos para Portugal. A mãe é que tem de dar essa ordem.”
“A mãe é que tem de dar essa ordem?”
Então não era? Tinha 17 anos. Vim com ela para Portugal. A Amália tinha um contrato a cumprir no casino Copacabana. Estava cinco meses bem, três meses no hospital. Disseram que era melhor fazer uma transplantação. Procurava-se quem podia dar o rim. Todos os irmãos disseram: “Eu dou.” Mas o meu irmão Filipe, o boxeur, era diabético. O outro tinha taquicardia. A minha mãe já tinha uma idade avançada. Fui eu.
Teve medo?
Tenho medo de uma injecção!, que fará. [Riso] Mas a gente nem pensa no medo. Faz-se e pronto. Deixei de fumar e tudo. Seis meses. Foi uma exigência que fizeram. Calhou que o meu rim era bom. Era aquilo a que chamam “match A”. Começou logo a funcionar assim que lho colocaram. Sabe o contentamento que uma pessoa sente por ter salvo a vida a outra? E a pessoa era minha irmã, ainda por cima. Viveu mais 44 anos, teve três filhos depois disso. Morreu no ano passado.
Vive entre Lisboa e os Estados Unidos, onde vivem as suas duas filhas.
A primeira foi para lá há 30 anos. Há vinte e tal anos, a outra. Nasceu a minha neta. Eu estava a cantar em Providence. Quando acabou o contrato, apanhei o comboio e fui para Washington. Fiquei três ou quatro meses. Depois fiquei seis meses. Depois fiquei nove. A miúda telefonava e dizia: “Gostas mais desse Portugal que de mim.” Lá ia eu.
Quando ia cantar, qual era o seu circuito? Estúdios de televisão? Comunidades portuguesas?
Fiz um programa para o Ed Sullivan, cantei na televisão em Providence. Cantava nos liceus americanos. Fiz tournée na Califórnia, Massachusetts, Canadá. Telefonavam: “Venha”, e eu ia.
Volto a pensar na casinha do Fundão. Como é que com essas tournées todas não houve guito para ela?
Também vai esquecendo. Outros valores mais altos se levantaram: as filhas, os netos.
Quando é que o dinheiro deixou de ser uma coisa determinante na sua vida?
O dinheiro nunca foi uma coisa determinante na minha vida.
Mesmo quando tinha muito pouco?
Sim. Tinha a esperança de ter um contrato amanhã. Hoje quem arranja um contrato é o meu neto. Nunca tive agente. Só no começo, o Fortuna. O que me valeu quando foi o 25 de Abril, e andei a cantar em boîtes como todos os artistas, a Simone, todos...
Agora disse o nome da mulher pela qual o seu marido a trocou. Há bocado disse “ela”.
[Riso] Pois, filha. Não lhe tenho raiva nenhuma. Não tem culpa. Não tenho raiva a ninguém. Ter raiva é uma coisa muito negativa. Tenho uma amiga que não entende que eu seja assim. Diz que eu sou mole.
Já chega? Ai Jesus. Está satisfeita?
Ainda não. O fado tinha no pós-25 de Abril uma aura de coisa fascista.
Não sei porquê. Se é uma coisa do povo, como é que pode ser fascista? Porque trabalhou durante o [antigo] regime...? Então não trabalhou toda a gente? Se não trabalhou, era parasita.
Sofreu muito com isso?
Não. Nunca liguei nenhuma à política. [Em] coisas que não percebo, não me meto. Tenho a instrução primária, só.
Tem a instrução primária, só, mas sabe muitas coisas.
Tenho um vício: ler. Gosto de Steinbeck, Dostoievski, Hemingway. Os Bichos do [Miguel] Torga, acho uma beleza. Os Maias do Eça. Vai-se aprendendo qualquer coisinha. A dizer mais uma palavrinha.
Sonhava chegar aos 91 anos?
Não. Achei que morria aos 33.
Como Cristo?
Não. Não sou crente desde os nove. A minha mãe dizia: “Nosso Senhor”, e eu dizia: “Seu Senhor. Nosso, não.” Sei lá porque é que achava que ia morrer aos 33! Também achava que ia para freira porque vi um filme com a Deborah Kerr que tinha um fato [de freira] que lhe ficava bem. Nunca pensei chegar aos 91 anos. Espero chegar aos 100, já agora. E assim. Em pé, a poder falar, andar, a poder pensar, entender.
Poder cantar.
Isso..., se não puder cantar, faço lalalá. É muito bom chegar a esta idade. Sou saudável. Tenho macacoas às vezes, mas não ligo. Tenho dores e faz de conta que não as tenho.
É uma mulher feliz?
Acho que sim. Não há felicidade completa. Também não há infelicidade completa. Há momentos. Tudo faz parte.
No documentário de Bruno de Almeida The Art of Amália, a sua irmã conta que estava doente e pensava que ia morrer. Pensou matar-se nos Estados Unidos porque não queria que a encontrassem morta aqui. Nos EUA, começou a ver filmes do Fred Astaire e isso reconciliou-a com a vida.
Já via filmes do Fred Astaire antes. Ajuda a passar. A pessoa agarra-se a qualquer coisa. Na altura, ela estava distraída e não pensava na morte.
Queria saber se alguma vez teve um momento assim, em que lhe apeteceu desistir de tudo.
Não. Nunca. Nunca. A única coisa que me entristece é o desgosto que vou dar à minha família quando desaparecer. Nunca pensei desistir de nada. Também depende do que a pessoa pretende conseguir. Nunca fui ambiciosa.
Porquê?
A pessoa nasce com isso ou não.
Nunca quis ter uma carreira mais...
Nunca. Pelo contrário. Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar.
Isso que sente tem uma relação com o sucesso da sua irmã?
Não. Ela também não ligava muito ao sucesso. Há pessoas que com um sucessozinho já se acham o máximo. Ela não. Manteve-se humilde, a gostar de coisas simples. Do seu carapau de escabeche.
Mantiveram a relação unha com carne até ao fim?
Sempre. Com todos os meus irmãos. [Houve um tempo em que] íamos todos os dias ver a Amália, a São Bento [a casa dela]. Íamos tomar chá.
Falavam de quê?
Tanta coisa. Da nossa infância, da nossa vida, do que vinha à baila. Mas cada um tinha a sua vida, a sua família, a sua casa, os filhos. Só ela é que não tinha filhos.
Sofreu muito, claro, quando ela morreu. Lembro-me de a ver na televisão e da sua cara devastada.
Que é que acha? Tanto por ela como pelos outros que morreram. É uma cacetada que nos dão na cabeça. Ninguém aceita. Por isso é que ando a falar com os meus netos e as minhas filhas, a prepará-los. Não querem ouvir falar.
Como é que se prepara uma pessoa para a morte de alguém tão querido e tão próximo?
É aceitar. Não temos outro remédio senão aceitar. Que adianta bater o pé e dizer não? Não quero velório. Não quero dar às pessoas a tristeza de estarem ali, a velar o meu corpo. Agora está a pôr-me triste. De pensar que vão ter esta tristeza. Está a ver? Se tivesse acabado [a entrevista antes]...
E se puserem um disco seu no velório? Se a puserem a cantar?
Isso está bem. Hum. Também não. Acabou?
Acabamos com música. Qual é que lhe apetece cantar? Imagine que cantava agora para a sua mãe e o seu pai.
Cantava o Milho Grosso. Normalmente, a minha mãe é que cantava para nós. Pedíamos-lhe sempre. Não me apetece isso [que me pede]. Dá-me tristeza. Fujo à tristeza. Não caio nessa. E não me vai fazer cair! Tenho pára-quedas.
O pára-quedas da vida. Aprendeu a defender-se.
Exacto. Macaca velha.
Vamos acabar. Mas nem lhe perguntei sobre as histórias do fado, das vielas, do Alfredo Marceneiro...
Já toda a gente falou disso. É corriqueiro. [Riso] Tio Alfredo. Tive o Tio Alfredo contratado quatro anos [na casa de fados que tive]. Ficou lá por causa do Varela, adorava o Varela. “Senhor Varela, como é que hei-de tratar um rei?” Era bem apanhado, ele.
(A minha avó dizia que a conversa é como as cerejas. E chamava-me “ganapa”. Eu ficava ofendida. Ganapa? Afinal, era “rapariga”.)
O Tio Alfredo era uma pessoa muito simpática que cantava muito bem o fado. E refilão. Dizia de mim: “Agora é ela que vai miar.” [Gargalhada] Era só para me arreliar.
Quem é que foi o seu maior fã?
[Tom muito sério] Desculpe: muita gente. Eu era girinha, girota. Tinha muitos admiradores. As minhas filhas e os meus netos são os meus maiores admiradores. Para eles, sou o máximo. O pequenino, o Gaspar, está sempre a dizer: “És a melhor fadista do mundo.” Do mundo! Imagine. “Não digas isso à frente das pessoas.” “Porquê? É verdade. És a melhor fadista do mundo.”