Mulher, pérolas, boi, vaqueiro

IN-ORGANIC é o solo em que a coreógrafa brasileira Marcela Levi se oferece em sacrifício, num manifesto contra o espectáculo em que tudo, incluindo o sexo e a morte, parece ter-se transformado.

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CLÁUDIA GARCIA

Hoje, a coreógrafa brasileira já não está interessada numa exposição tão explícita como a desta peça em que transformava o corpo feminino num campo de batalha contra a espectacularidade, aludindo paralelamente às festas tradicionais de bumba-meu-boi do Nordeste brasileiro e aos jogos mais universais da sedução e da exploração sexual. Interessa-lhe mais, agora, ver em IN-ORGANIC a prova de que é justamente ali, no corpo, que sujeito e objecto se encontram. Inventou, de resto, uma palavra para esse encontro, uma palavra que é também um manifesto de acção: a palavra "subjecto". Passa a explicar: “Os subjectos são objectos-sujeitos disfuncionalizados que contrariam a ideia de que nós controlamos os objectos, que é, em si, uma ideia antropocentrada." Melhor exemplo? O modo como os móveis condicionam a nossa presença no nosso próprio espaço, na nossa própria casa: “Há uma circulação criada pelo modo como os móveis estão dispostos que os torna activos."

Essa ideia está, diz, em tudo o que faz: "Eu tenho uma estratégia que faz do que faço não um espectáculo mas um acontecimento. Quero estabelecer uma relação do eu-corpo com aqueles objectos. É um discurso por dentro que me está acontecendo na hora. Não defendo ou ataco a situação, sofro e sou atravessada por ela." O efeito é este: “a desterritorialização do meu trabalho”. O seu corpo, explica, não é brasileiro; não é um mapa fechado, estanque, concluído. No segundo momento de IN-ORGANIC, a imagem de uma mulher que segura o corpo do filho assassinado, fixada por um fotojornalista que com isso ganhou um prémio, é uma reacção a outro tipo de espectacularidade, que interliga a realidade com a ficção – e o fetichismo – de uma sociedade que acede à realidade através de filtros mediáticos.

Passaram sete anos sobre a estreia de IN-ORGANIC e  a dúvida continua: “Não será que existe uma linha de fuga entre o conflito mortal e a pacificação entre as pessoas?” A essa fuga Marcela chama contrato – sinónimo do que pode haver de comum entre o homem e a mulher, o indivíduo e o colectivo, o humano e o animal, a imagem e o discurso,  o corpo e o espaço, a palavra e a acção, o tempo e o desaparecimento. “O meu trabalho dramatúrgico é o de desconhecimento, como se eu não soubesse o que era aquilo. Talvez seja uma estratégia de me aproximar do ‘devir qualquer coisa’ dos objectos”, sugere.

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