Em Talin, capital da Estónia, bem no centro da cidade velha, uma fila de “rickshaws” puxados a pedal aguarda por turistas. Por vezes, serpenteiam eventuais curiosos, à espera de um sinal de paragem ou de um olhar inquiridor. Roman estaca na acolhedora Raekoja plats, a praça onde, parece, tudo começa e tudo acaba. À pergunta, em russo, “?? ???????? ??-???????” (“Olá. Falas russo?”), a resposta, comum entre estes ciclistas que cruzam as ruas, é “??”. Sim.
Num país de 1,3 milhões de pessoas, onde cerca de um terço da população pertence à minoria de falantes de russo (332 mil, segundo dados deste ano), Roman é um dos muitos jovens que olham para o outro lado da fronteira com um confuso misto de emoções e opiniões. Na casa dos 20 anos, com cidadania estónia, estuda Tecnologia da Informação na Universidade de Tecnologia de Talin, mas gostava de ser psicólogo. Teve de fazer uma opção, olhando para a empregabilidade de um país tecnológico (“não há psicólogos na Estónia”), mas também para a diferença dos valores do salário médio em relação a países como a Finlândia ou Suécia (onde chega aos quatro dígitos), destinos migratórios populares, para onde se vê a emigrar dentro de alguns anos (não é só por Portugal que se fala de uma fuga de cérebros).
Como trabalho de Verão, Roman guia turistas pelas ruas da capital do país onde nasceu e cresceu, mas que nem sempre conhece. Como se identifica? “Um tipo que fala russo na Estónia.” Como muitos outros, sempre viveu no seio da comunidade russa. A cultura que conhece é a da sua família, russa. Os programas de televisão, os jornais, a rádio, a música. Frequentou escolas russas, onde, apesar das recentes transformações que reforçaram o ensino do Estónio, não aprendeu a dominá-lo. As línguas são muito diferentes e, diz Roman, “as aulas não eram assim tão boas”. O que significa que hoje o idioma, as tradições, os hábitos dos estónios ainda lhe são estranhos. “Gostava de saber mais”, confessa, louvando as iniciativas do governo para promover a integração. Mas, ainda assim, não chega para se identificar como estónio ou até mesmo europeu.
Russos mais europeus
De Talin a São Petersburgo distam pouco mais de 300 quilómetros, uma proximidade que não significa semelhança. “Sinto-me russo”, admite Roman. “Os estónios e os russos são muito diferentes. É como os europeus e os chineses.” No país olha-se para as movimentações russas no Leste da Ucrânia com alguma preocupação, algo que Roman rejeita. Primeiro, considera que “há muita informação falsa” a circular no que toca à Crimeia, que, sublinha, “não foi ocupada ou invadida”, tudo foi “aceite”. Segundo, duvida que algo semelhante alguma vez pudesse acontecer na Estónia e também não o deseja. “Se a Estónia se tornasse russa, os estónios ficariam como nós [russos] estamos agora.” No entanto, ele, que nunca viveu na União Soviética (a Estónia recuperou a independência em 1991, depois de 52 anos de ocupação), não poupa elogios à economia desse tempo, ao poder da indústria que empregava tanta gente. Replica, talvez, tudo o que ouviu ao longo de 20 anos de vida. Por isso, se pudesse escolher, a decisão não seria Estónia, União Europeia ou Rússia: “Preferia estar na URSS.”
Uma posição bastante “incomum” dentro desta comunidade minoritária, afiança Andrei Lossitski, 27 anos, filho de pai russo e mãe estónia, criado, como Roman, num ambiente russo. “Sinto-me russo”, diz, em entrevista via Skype. “Mas um russo a viver na Estónia”. E isso é diferente? Sim. “Porque toda a minha infância foi no meio de pessoas russas, a brincar com crianças russas. Tive vizinhos russos, amigos russos, colegas russos. Estudei numa escola para russos.” O que não significa que Andrei, que foi à Rússia uma única vez com apenas cinco anos, se renda ao país. “Eu não estou a dizer que adoro o Putin, até porque não estou por dentro da política. Não quero mudar-me para a Rússia, viver lá, tocar balalaika e beber vodka.”
Tal como Roman, Andrei não vê a situação na Crimeia como uma ocupação — “As pessoas votaram para fazer parte da Rússia. (…) Na televisão vi pessoas com um cartaz a dizer ‘we’re glad we’re back home’ (estamos felizes por voltar a casa)”. Na Estónia, diz, tal nunca poderia acontecer. Para além de a Rússia “não estar interessada”, os próprios russos na Estónia não partilham do mesmo desejo. “Os russos da Crimeia e os russos na Estónia são muito diferentes. Os russos a viver aqui são mais europeus ou estónios.”
Quando era mais jovem a relação entre os dois grupos era “difícil”. Ainda em 2007 a deslocação de um monumento dedicado ao soldado do Exército Vermelho causou uma profunda crise diplomática. Hoje, diz Andrei, continua a sentir-se alguma amargura no ar, visível em pequenos pormenores (por exemplo, quando lêem o seu sobrenome), mas tudo muda quando desata a falar estónio, um passaporte para entrada na cultura e tradições do país. “Aí pensam logo que sou boa pessoa, um bom amigo. Se vives aqui, é bom que saibas a língua, até porque vais precisando dela, mas não tens de o fazer. É uma escolha tua.” O russo continua a ser amplamente usado, com quase metade dos estónios, especialmente os mais velhos, a saberem-no falar. Mas nem sempre o fazem. “Se um estónio souber russo não o vai falar, e eu não sei porquê. E o russo não sabe estónio. Por isso não conseguem comunicar.”
Desigualdade de oportunidades
O desconhecimento da língua oficial é, à partida, um “problema” para a integração dos russos, tal como a indefinição da cidadania com que muitos se deparam (especialmente os mais velhos). Dados oficiais mostram que o desemprego é maior entre aqueles que não dominam a língua. “Os estónios continuam a ter mais oportunidades”, reconhece Andrei. A situação, longe de ser ideal, "parece estar a mudar", reconhece o jovem informático. Um estudo conduzido por Marju Lauristin, professor de Sociologia na Universidade de Tartu, em 2011, mostra que a comunidade de falantes de russo não é tão homogénea como era no início de 1990. O investigador avançou com cinco padrões de integração na sociedade em relação aos russos étnicos. Se a maior percentagem cabe aos “pouco integrados” (grupo que corresponde aos que têm salários mais baixos, trabalhadores do sector manual, mas também reformados e desempregados, com pouco domínio da língua e cidadania indefinida), é nos grupos mais jovens que se verificam maior níveis de “integração com sucesso” (21%, geralmente a segunda geração, jovens que nasceram e foram educados na Estónia, dominam a língua e consideram-se parte da comunidade). No governo, há um Ministro da Educação de 28 anos chamado Jevgeni Ossinovski, encarado como uma lufada de ar fresco neste cenário. Na Selecção Nacional já se vêem nomes russos.
Daqui a uns tempos, garante Andrei, já ninguém vai falar da Crimeia ou Ucrânia. “A Rússia não vai voltar atrás. Vai ficar assim e tudo vai ser esquecido." Sendo a Estónia um membro da NATO (bem visível nas bandeiras hasteadas à frente de várias instituições oficiais), o primeiro-ministro estónio, Taavi Rõivas, não acredita que alguém alguma vez considerasse atacar tamanha organização, mas está consciente que a situação na Ucrânia “alterou o esquema de segurança de todos os países europeus”, incluindo, por exemplo, da Finlândia ou Alemanha. “Não vejo ameaças directas, mas vejo ambição por um império”, considera o político, em declarações proferidas durante um encontro com jovens jornalistas de todo o mundo decorrido no mês passado, aludindo à crise da Geórgia em 2008. “Não devemos tolerar na Europa do século XXI que um país mude as fronteiras de outro pela força.”
Esta quarta-feira, antes da Cimeira da NATO no País de Gales, o Presidente dos EUA, Barack Obama, está em Talin, na Estónia, onde se está a encontrar com os chefes de estado dos bálticos, numa visita destinada a mostrar apoio a estes países, vista como simbólica e estratégica por alguns analistas. Esta manhã, comentando o anunciado acordo para um cessar-fogo no Leste da Ucrânia durante uma conferência de imprensa conjunta com o presidente estónio, Toomas Hendrik Ilves, Obama, citado pela AFP, mostrou-se cauteloso: "É demasiado cedo para dizer o que significa este cessar-fogo." E deixou a esperança: "Há uma oportunidade, vamos ver se se concretiza."
A jornalista viajou para a Estónia no âmbito da visita de estudo "100 Friends", promovida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do país.
Artigo actualizado às 12h27 de 4 de Setembro.