Uma avaliação destruidora
Um país não se torna mais desenvolvido deitando fora metade da sua ciência e tecnologia.
Descobriu-se que havia uma quota escondida no contrato entre a FCT (ordenante) e a European Science Foundation (executante): 50 por cento dos centros eram à partida para abater, de acordo com uma teoria que foi anunciada como sendo uma “poda” (está visto que nada sabem da poda, ninguém poda um pomar abatendo pela raiz metade das árvores ricas em frutos). Descobriu-se também, conhecidos os avaliadores e as classificações por eles atribuídas, que as regras da FCT tinham sido alteradas por ela própria a meio do processo, diminuindo drasticamente o número de avaliadores, o que fez com que haja em muitos casos notas dadas, de um modo necessariamente arbitrário, por não especialistas.
Os investigadores, habituados à competência e ao rigor, não aceitam esta bambochata, que vai causar uma razia sem precedentes num sistema que tão boas provas tem dado até agora, estando num caminho ascensional para a média europeia. O Conselho de Laboratórios Associados, que reúne mais de 2500 cientistas dos maiores e melhores laboratórios, pronunciou-se contra. As Sociedades Portuguesas de Física, Química, Matemática e Filosofia pronunciaram-se contra. A Comissão Nacional de Matemática, que integra todos os centros desta área, pronunciou-se contra. Os Reitores, pronunciaram-se contra. O Reitor da Universidade de Lisboa, de longe a maior do país e também a melhor a avaliar pelo último ranking de Xangai, foi particularmente demolidor. Os sindicatos dos professores e investigadores pronunciaram-se contra. A associação nacional de bolseiros pronunciou-se contra. Até os próprios Conselhos Científicos da FCT se revelaram críticos.
Todos estarão contra esta “avaliação”? Não. O imunologista jubilado António Coutinho, pai assumido da “teoria da poda”, revelou-se num artigo do Expresso a favor, afirmando entre outros dislates que muitos professores universitários tinham era de ensinar, abandonando a investigação que não estaria ao alcance deles mas sim e apenas de grandes mentes. Só há um pequeno problema: ele não é inteiramente isento, pois, além de mentor do abate, é o coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, órgão presidido por Pedro Passos Coelho e, portanto, comprometido com a política do governo.
O processo continua a decorrer e a causar estragos na reputação do país: a revista Physics Today da Sociedade Americana de Física acaba de dedicar, facto inédito, duas páginas à maior crise da ciência portuguesa. E na comunidade científica: por exemplo, Paulo Veríssimo, um professor sénior de Informática da Universidade de Lisboa, de um centro chumbado, fartou-se e fez as malas para emigrar, tal como alguns bons jogadores de futebol no fim do período de transferências. Para montar o seu grupo, a Universidade do Luxemburgo dá-lhe cinco milhões de euros, quase tanto como os seis milhões que a FCT quer atribuir como “bodo aos pobres”, uma esmola piedosa, para dividir pelos 154 centros condenados.
Além de Coutinho ninguém mais acredita em Miguel Seabra, Presidente da FCT, ou em Nuno Crato, que, como disse o jornalista Nicolau Santos do Expresso, pode ficar conhecido como “science killer”. Executar sumariamente metade dos centros de investigação é algo que nunca pensei que ele fosse capaz. A nossa ciência estava a crescer, mas “fogo amigo” está a dizimar metade das tropas. O pretexto de que nem todos são excelentes é ridículo: há algum país onde todos o possam ser? Essa é aliás a característica da excelência, só alguns o podem ser, mas para o serem precisam de outros. Chamar medíocres aos que não são excelentes, como faz Coutinho, denota uma visão distorcida do mundo.
Os países precisam de ciência e da tecnologia para se desenvolverem. Portugal precisa de aproveitar bem os recursos que tem nesta área. Como país pequeno precisa de aproveitar da forma mais eficiente os seus recursos humanos. Para isso é necessário proceder a uma distribuição inteligente do financiamento, vendo onde é que o investimento de um euro terá o maior retorno. Ao concentrar praticamente todo o financiamento em apenas metade das unidades de investigação, o retorno pode revelar-se bem inferior ao que seria obtido investindo também nalgumas das outras unidades, cujo trabalho meritório está à vista. Um país não se torna mais desenvolvido deitando fora metade da sua ciência e tecnologia, desprezando anos de investimento feito com o dinheiro dos contribuintes, ainda por cima por um processo repleto de irregularidades. Não seria mais útil, para nos tornarmos mais desenvolvidos, deitar fora metade do governo?
Professor universitário (tcarlos@uc.pt)