“O ministro da Saúde ainda não demonstrou ter coragem política para enfrentar os lobbies das corporações”
Marta Temido, a presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, defende que “é preciso refundar o Serviço Nacional de Saúde” de uma forma “que lhe permita ter mais flexibilidade” para responder às actuais necessidades dos portugueses.
Disse recentemente que só deixando de cumprir a lei dos compromissos se consegue evitar chegar a uma situação de ruptura nos hospitais. Porquê?
A lei dos compromissos tem um objectivo útil e meritório que é o da não acumulação de dívida. A questão é que esta lei tem sido muito criticada pela sua difícil aplicabilidade ao sector da saúde que, apesar dos reforços pontuais, não tem um orçamento adequado. Durante anos foi financiado em função do histórico, agora é financiado em função das disponibilidades do Estado português. Substituímos um erro por outro erro. Se os hospitais cumprirem a lei dos compromissos [só autorizar despesas quando se sabe que há cabimento orçamental no prazo de três meses], há cuidados que deixarão de prestados e tratamentos que serão interrompidos. Se o administrador hospitalar for um mero servidor da lei, paralisa o sistema. Era muito fácil fazermos uma greve de zelo, bastava que começássemos a cumprir as regras. Às vezes a população não tem a noção de que incorremos diariamente em responsabilidade financeira por assumirmos as compras das coisas mais básicas, desde cateteres até algodão, sem termos cabimento orçamental, por vezes porque o próprio Estado não pagou aos hospitais.
Seria possível dizer em números qual seria o orçamento adequado para os hospitais funcionarem sem problemas?
É uma conta difícil de generalizar. Primeiro precisávamos de responder a uma pergunta: qual é a oferta de que necessitamos? Temos a malha de serviços muito desajustada do que são as necessidades actuais dos portugueses, em termos epidemiológicos, em termos das necessidades da população.
Aqui caímos na questão da reforma hospitalar. A criação dos centros hospitalares serviu para fazer alguma concentração de serviços ou de unidades?
Sim, o processo de criação dos centos hospitalares teve um intuito de obtenção de economias de escala, mas também serviu nalguns casos para resolver problemas políticos. Foi mais fácil para o decisor político integrar determinados hospitais num centro, adiando uma decisão de encerramento de portas.
Mas encerraram-se serviços?
A expectativa era a de que os conselhos de administração fizessem esse trabalho, que não foi, no fundo, planeado. A primeira legislação sobre centros hospitalares dizia que tinha que haver um documento preparatório, um estudo prévio para a criação destes centros. Eu fui nomeada para o conselho de administração de um dos primeiros centros hospitalares e fiquei admirada quando pedi o estudo prévio, para meu grande espanto, não existia. Isto foi há mais de dez anos, entretanto fui perdendo alguma ingenuidade. Avançamos, assim, com soluções baseadas no achamos que, parece-nos que, mas não numa programação. Somos péssimos a planear e a programar as coisas. Juntaram-se, pois, unidades com base em critérios estritamente de proximidade geográfica quando as instituições mais pequenas por vezesnão tinham viabilidade. Não estou a defender o encerramento de serviços, só estou a dizer que às vezes se optou por esse tipo de soluções. E as soluções eram normalmente duas: fechar a urgência e abrir uma unidade de cirurgia de ambulatório.
Fecharam-se serviços, portanto.
Sim, fecharam-se, ou, melhor dizendo, relocalizaram-se .
Mas a parte mais complexa da reforma na saúde, a reorganização da rede hospitalar, continua por fazer. Isto acontece porque é polémica?
Sim, é uma reforma difícil, que envolve muita coragem política. O decisor político tem sido muitas vezes - e quando não tem sido isso tem-lhe saído caro - permeável às pressões dos municípios e até das próprias corporações.
Este ministro não tem tido coragem política?
Até agora ainda não demonstrou ter coragem política. Há aspectos em que de facto o Ministério da Saúde tem tido uma acção muito evidente, designadamente no combate à fraude e corrupção no Serviço Nacional de Saúde [SNS]. Mas esse objectivo é, no máximo, partilhado com o Ministério da Justiça. Não nos iludamos. Nem o equilíbrio orçamental é o objectivo primordial do Ministério da Saúde, nem o combate à fraude o deve ser.
O ministro Paulo Macedo enfrentou os lobbies da indústria farmacêuticas e das farmácias. Com as corporações (médicos, enfermeiros, etc) não está a fazer o mesmo?
Na área da saúde as corporações têm um peso brutal. Pelo contexto financeiro em que país se viu mergulhado, como noutros países europeus, têm sido escolhidas políticas de aplicação e resultados rápidos. As medidas que produzem resultados sustentados demoram tempo porque envolvem as corporações e estas normalmente são avessas a perder alguns dos poderes e privilégios que têm. Este processo exige muito diálogo, muita consensualização.
Os administradores hospitalares queixam-se de terem hoje grandes dificuldade quando querem contratar pessoal.
Sim, eu, por exemplo [Marta é vogal do conselho de administração do Hospital de Cantanhede], tento contratar médicos desde 2012 sem conseguir, o que me obriga a recorrer a empresas de prestação de serviços, ainda que a minha situação seja especial porque este hospital não é EPE [Entidade Pública Empresarial]. Mas mesmo o processo de empresarialização teve um recuo em toda a linha desde que o país entrou em situação de assistência financeira. Tudo carece hoje de autorização e isso alongou tremendamente a cadeia burocrática.O problema é que não temos excedentes de pessoal para tratar situações de falta devido a atestados por doença ou de licenças por gravidez.
Entretanto, as pessoas que pretendiam contratar emigram ou vão para o sector privado…
Sim, isso é outro problema. Até no meu microclima, nesta pequena instituição, já perdi médicos para irem para o estrangeiro. Muitos vão porque se sentem maltratados, não por causa das reduções financeiras, apesar de estas serem importantes. Não se tenha a ilusão de que é só com dinheiro que se resolvem os problemas. Há outras compensações, como por exemplo a do tempo de serviço extraordinário contar a dobrar para as aposentações, ou a de oferecer alojamento e outras despesas pagas.
Diz que gosta de olhar para o futuro, mais do que avaliar o passado. Como antevê o futuro do SNS?
O SNS, tal como foi desenhado, tinha um conjunto de princípios que não podemos nem devemos ou queremos abandonar. Mas tem um conjunto de características de desenho que já não são adequadas àquilo que são as necessidades dos portugueses. Não podemos pensar que uma malha de serviços com um desenho de há 35 anos resolve os problemas de uma população que hoje é maioritamente afectada por um conjunto de doenças crónicas. Estima-se que, nos países desenvolvidos, 80% do peso da doença em 2020 será devido a doenças cronicas e a multicronicidade [a mesma pessoa sofrer de várias doenças crónicas]. Portanto, temos que refundar o SNS tendo em conta esta diferente tipologia de necessidades e de uma forma que lhe permita ter mais flexibilidade, mais agilidade.
As doenças crónicas fazem-nos pensar na necessidade de se recentrar a oferta nos cuidados nos cuidados de proximidade.
Sem dúvida, nos centros de saúde ou, chamem-lhe o que quiserem, nas policlínicas. O que é facto é que não são hospitais.
Se tudo corresse como gostaria, isto significava que os administradores hospitalares teriam que se dedicar mais aos centros de saúde?
Acho essa ideia extremamente aliciante. Temos que trabalhar onde estão os doentes, não onde está a tecnologia. Por isso defendo administradores hospitalares com formação especializada. O futuro passa por situações desenhadas à medida de necessidades locais, está nos cuidados de proximidade.
As dívidas vencidas nos hospitais EPE diminuíram mas estão de novo a aumentar. Entre Janeiro e Julho deste ano aumentaram 152 milhões de euros, ou seja, a tendência para o endividamento mantém-se. Como explica este fenómeno?
A tendência mantém-se porque não resolvemos a doença, apenas administramos um tratamento que adiou a infecção. Houve um recuo na dívida em resultado das injecções que os ministérios das Finanças e da Saúde autorizaram e que permitiram aos hospitais respirarem. Mas o problema continua lá. E o problema é a oferta destruturada em relação às necessidades em saúde. Continuamos a ter hospitais, hospitais, hospitais. Até o nome da nossa profissão está errado, na minha perspectiva.
Propõe outro nome?
O que defendo é que o administrador da saúde ou administrador hospitalar deveria ter conhecimentos reforçados na área da epidemiologia, da saúde pública, estar preparado para olhar para o sistema de saúde como uma área muito complexa e em constante dinâmica. Temos que fazer a refundação do SNS em torno dos cuidados de saúde primários. Continuamos a ter (e o SNS vai fazer 35 anos) o velho hospitalocentrismo. Oitenta por cento dos recursos humanos estão nos hospitais, os atendimentos são [maioritariamente] feitos em hospitais. Raciocinamos sempre em função da reorganização da malha hospitalar, das carteiras de serviços. Temos coisas magníficas como as USF [Unidades de Saúde Familiar, pequenas equipas que trabalham em conjunto nos centros de saúde], experiências bem pensadas.
Mas o problema das USF é financeiro. O Governo não criou estas unidades ao ritmo que a troika defendia.
Este ano anunciaram a criação de 50 USF. São poucas para as propostas que existem, ainda que não advogue um modelo único.
Não haver um modelo único nos centros de saúde não levanta o problema da desigualdade entre cidadãos?
Sim, há portugueses que não têm médico de família mas isso é um problema que podia ser enfrentado, mais uma vez com coragem política, nomeadamente com a atribuição de mais competências aos enfermeiros.
Acha que um enfermeiro poderia, por exemplo, passar receitas de alguns medicamentos aos doentes crónicos?
Tenho algumas ideias sobre isso, mas penso que essa questão tem que ser resolvida com o envolvimento das equipas. No princípio de Agosto saiu a legislação sobre o enfermeiro de família, a Direcção-Geral da Saúde vai fazer guidelines e administrações regionais de saúde vão desenvolver a figura através de experiências-piloto.
Qual é a sua opinião sobre o aumento das taxas moderadoras decidida pelo actual Governo?
Temos das taxas moderadoras das mais elevadas da Europa, apesar destas terem um peso reduzido no financiamento (representavam 0,95% do total do financiamento em 2011 e passaram a representar 2,4% em 2013). O peso ainda é residual, mas sabemos que as taxas moderadoras afectam uma fatia da população que vive com condições muito precárias. Tivemos um empobrecimento da classe média nos últimos anos. A classe média também adoece. Essa população está, de facto, menos salvaguardada do que estava há alguns anos.
Isso faz-me pensar na questão dos serviços de urgência hospitalares. Quando as taxas moderadoras aumentaram, verificou-se um decréscimo na procura, que mais tarde acabou por estabilizar.
São [os efeitos] das medidas curtas e rápidas. Estas medidas têm uma eficácia muito limitada, depois o mercado ajusta-se. Continuamos a ter o velho problema: urgências entupidas com pulseiras verdes e azuis [doentes não urgentes] que deviam procurar cuidados de proximidade.
Mas essas pessoas vão à urgência muitas vezes porque não têm resposta nos centros de saúde.
A população não é estúpida, se procura a urgência é porque pelo menos não sabe que tem alternativa. Era importante termos um manual de utilização do SNS. Temos que tornar os doentes consumidores mais informados e parceiros do tratamento. A melhor solução para os problemas em saúde é não deixar as pessoas adoecer.
Isso é possível no quadro de um país cada vez mais envelhecido?
Envelhecido e empobrecido. O que podemos fazer para tentar obviar este problema é tratar as pessoas o mais cedo possível e o mais barato possível, ou seja, quando a doença ainda está numa fase tal que não exija cuidados muito sofisticados. Isso pressupõe os cuidados de proximidade. Um exemplo: não preciso de um centro hospitalar universitário para tratar um doente com asma se o tiver controlado.