Uma viagem pela moda de praia, do pudor ao puro gosto
Pusemos o pé na areia para ver o que se usa hoje e fizemos uma viagem estival dos vestidos completos ao feminismo, da ousadia dos biquínis até ao nascimento da indústria da moda de praia.
Estender a toalha e apanhar sol é um ritual que tinha apenas fins terapêuticos no fim dos anos 1880 – e, em público, o corpo tinha de estar completamente tapado. Os fatos de banho eram como vestidos e quem ia ao mar tinha de o fazer em traje de passeio e sombrinha. Muda-se de século e até aos anos 1920 os banhos de sol eram uma espécie de fruto proibido. “O tom bronzeado era associado às classes mais baixas”, explica ao PÚBLICO Maria João Mota Veiga, professora de História da Moda na Escola de Moda de Lisboa.
Mas muita coisa iria mudar nessa década de prosperidade pós-guerra, de jazz e rádio. Foi também quando a criadora de moda Coco Chanel se bronzeou livremente, ignorando a moral da época. Criou uma nova tendência que depressa levou ao desenvolvimento de trajes de praia cujo objectivo era realçar o tom de pele tisnado. O bronzeado passava a ser associado “ao luxo de poder viajar para lugares distantes com sol ou à prática de desportos de luxo ao ar livre”, esclarece Maria João Mota Veiga.
O encurtar das saias dos fatos de banho e dos vestidos para os cobrir aconteceu sobretudo “na sequência de uma libertação da mulher e especialmente no reconhecimento da igualdade de género”, frisa Paulo Morais-Alexandre, professor de Dramaturgia do Figurino e de História do Vestuário e da Moda na Escola Superior de Teatro e Cinema. Jean Patou, outro criador francês, teve um papel tão importante quanto o de Chanel na fundação da moda de praia – criou variados trajes formados por vestidos curtos com casacos leves a condizer, respondendo à recém-nascida preocupação com a roupa de banho.
Enquanto se prepara para mais um almoço na Costa, Manuel Farinha recorda rituais de outros tempos. “Em 1946, quando chegávamos à praia, íamos a um balneário mudar a roupa normal para os fatos de banho. Eu tinha uns calções até debaixo do joelho e uma camisola de meia manga; as raparigas, noutro balneário, vestiam um género de macacão inteiro”, conta. Já era “permitido” expor um pouco mais de pele e os fatos de banho começaram a revelar “cada vez mais partes do corpo que [antes] era impensável mostrar”, conta Maria João Mota Veiga. Nas senhoras, os decotes aprofundam-se, as cavas aumentam e os saiotes de praia diminuem. Alguns fatos de banho expõem mesmo a parte superior da barriga.
“O problema era o agente da Polícia Marítima, tinha de estar sempre de olho nele”, ri-se o senhor Farinha da versão balnear da polícia de costumes. “De vez em quando ainda tirava a camisola e ficava de tronco nu, mas quando ele aparecia, vestia-a logo.” Na década seguinte, quando a RTP nascia e Humberto Delgado se candidatava à presidência, os fatos de banho ainda cobriam bastante a perna. Amélia, 68 anos, a fugir da hora do calor na praia da Saúde, também se lembra da saia: “Eu até tinha um roupão para vir para a praia. Depois tive um fato de banho com uma saia pequenina e só depois é que começaram a aparecer alguns biquínis.”
Bardot, Andress, má-língua
Portugal demorou cerca de três décadas a vestir um biquíni. Em Junho de 1946, o francês Jacques Heim lançou o fato de banho “mais pequeno do mundo”, de duas peças – um soutien de dois triângulos unidos por cordões e cuecas –, mas ninguém se atreveu a vesti-lo. Um mês depois, Louis Réard – um engenheiro francês que trabalhava na loja de lingerie da mãe – apresentou outro modelo, promovido como “mais pequeno do que o fato de banho mais pequeno”. “Punha em evidência zonas consideradas eróticas”, diz a professora de História da Moda, e a única mulher que se atreveu a usá-lo para a sua apresentação ao público foi uma stripper. “Causou um enorme frisson. A imprensa comparou a indumentária ao ensaio nuclear que havia ocorrido, nesse mesmo ano, no Atol de Bikini”, lembra Paulo Morais-Alexandre. E assim ficou baptizado o fato de banho de duas peças.
A maioria das mulheres não estava preparada para mostrar o umbigo, muito menos em Portugal. Manuel Farinha confirma: “Os fatos mais curtos foi só lá para 1950, 1961. As pessoas começavam logo a reparar, a cochichar. Não foi uma transição repentina, foi muito gradual. Havia muita má-língua, não era costume ver-se tanta pele.”
Noutras praias, noutros países, Brigitte Bardot e Ursula Andress aceleravam o processo e tornavam-se ícones na história dos biquínis. Durante o Festival de Cannes, em 1953, Bardot posou no areal de Saint-Tropez, descalça, com um modelo florido sem alças. Foi a sua primeira visita a Cannes e nem sequer participava num filme do festival. Uma estrela desconhecida que depressa se tornou o centro das atenções devido ao biquíni flagrantemente reduzido para a época.
Na areia juntaram-se fotógrafos e o passadiço junto à praia abarrotava de curiosos. “Ela inventou a nova imagem das estrelas francesas: não era snob nem intimidante”, diz à revista Hollywood Reporter Edward Baron Turk, professor de cinema da Universidade de Columbia. Quase dez anos depois, já Itsy bitsy teenie weenie yellow polka dot bikini tinha feito aumentar as vendas de biquínis quando a primeira Bond Girl surge pela primeira vez no ecrã precisamente num modelo branco, com um cinto e com uma faca na cueca em Dr. No.
Lentamente abriam-se portas para modelos cada vez mais reduzidos, mas os “guardiões da moralidade”, como os designa Morais-Alexandre, continuam a existir. Manuel Farinha lembra-se bem dos “olhares de soslaio” quando as senhoras desfilavam em biquínis um pouco mais ousados.
O biquíni “seduziu as mulheres, pois punha em evidência os seus atributos físicos e obviamente isso seduzia também os homens”, diz Maria João Mota Veiga. Mas não foram só duas peças que revolucionaram a moda de praia dos anos 1960. O monoquíni apareceu de uma forma muito semelhante ao biquíni, novamente pela mão de um homem, o criador de moda Rudi Gernreich, em 1964. Um fato de banho de uma só peça, com cueca alta, preta, com apenas duas tiras unidas no pescoço e que deixavam o peito à mostra, permitindo a prática do topless.
Em Sesimbra, lembra-se Manuel Farinha, só nos anos 1980 se viu mais topless. “Às vezes, a Polícia Marítima ainda ia lá dar uma palavrinha. Havia quem ficasse de olhos em bico. Principalmente os mais velhos”, conta. “Agora mudou tudo.”
A vulgarização da seminudez
O padrão de beleza tinha-se alterado. O tom bronzeado já era um desejo de muitas mulheres e os modelos mais reduzidos vulgarizaram-se no final da década de 1970. Efeito turismo. Em relação ao resto da Europa, Portugal adoptou a tendência tardiamente, mas Dina Dimas, conservadora do Museu Nacional do Traje – que recebe ao longo do ano doações de fatos de banho antigos –, vê no crescimento do turismo a grande influência da moda de praia em Portugal. “Os estrangeiros traziam novas modas.”
José e Mariana Madeira são testemunhas. Para a sua residencial em Montinhos de Burgau, no Algarve, “vinham muitos ingleses, franceses e italianos”. Traziam nas malas biquínis, roupas vistosas e saídas de praia. “Nos anos 1980 é que já se via muitos biquínis. Primeiro foram os mais subidos, pareciam umas cuecas altas, e depois foram descendo, descendo”, lembra José. “Algumas até faziam topless na piscina”, diz Mariana, que, estranhando o seu à-vontade, nunca disse nada. “Via-se logo quem eram as estrangeiras e as portuguesas. As portuguesas não usavam os biquínis mais curtinhos, só depois é que aquilo começou a pegar”, distingue Mariana Madeira.
“A vulgarização da nudez ou seminudez é um fenómeno inevitável da evolução das mentalidades ao longo do século XX. O desejo de mostrar cada vez mais o corpo é um processo libertador inevitável da evolução sociológica da sociedade contemporânea”, explica Maria João Mota Veiga, que classifica o aumento da porção de pele visível como um óbvio “sinónimo de maior confiança e, acima de tudo, vontade de assumir o corpo sem complexos”. Mas se nas décadas de 1980 e 90 as mulheres em topless e fio dental protagonizavam os anúncios de protectores solares, agora muitas “campanhas de produtos de praia optam pelo fato de banho”, salienta Maria João Mota Veiga.
Voltamos ao areal da Caparica, uma das praias mais concorridas da Grande Lisboa. Junto ao mar, um grupo jovem: uma rapariga com um fato de banho cai-cai com folhos no peito e chapéu de abas largas que nos leva para o glamour dos anos 1950; outra usa um biquíni cruzado nas costas e uma tanga brasileira verde-alface. As dimensões dos biquínis passaram a depender do gosto das suas utilizadoras – e são muitos e diferentes. Mais ou menos reduzidos, os novos modelos espelham como os códigos voltaram a mudar.