A história da música americana escreve-se em vinil
Um filme liga todos os outros nesta edição do ciclo Cinema no Terraço que na próxima quarta-feira chega à ZDB, em Lisboa: A Cosmic and Earthly History of Recorded Music according to Mississippi Records é uma ode ao vinil como veículo das emoções, das histórias e das vozes que criaram a música americana.
Sem qualquer pretensão científica, arrisque-se afirmar que estas condições são também traços dos filmes do próximo ciclo Cinema no Terraço, que a Galeria Zé dois Bois, em Lisboa, acolhe a partir da próxima quarta-feira, 3 de Setembro, com a projecção de O Povo que Canta (2003), de Ivan Dias e Manuel Rocha, e que se encerrará ao som de The Source Family (dia 24), de Maria Demopoulos e Jodi Wille. Entre um e outro, estarão filmes dedicados a Alan Lomax (dia 10), a John Fahey (dia 17) e, merecendo especial destaque, uma sessão muito particular, pelo mistério que a rodeia. Trata-se de A Cosmic and Earthly History of Recorded Music according to Mississippi Records, que chega a Lisboa dia 12, depois da estreia, na véspera, no Cinema Passos Manuel, no Porto, em parceria com a Milímetro. Por trás desse filme está Eric Isaacson, 38 anos: editor discográfico, arqueólogo informal, dono da loja que, com o mesmo nome, se tornou, na cidade de Portland, uma meca para todos aqueles que ainda encontram nos discos veículos de vozes, emoções e histórias. A propósito, é também a Eric que se devem a redescoberta de Abney Jay, de Michael Hurley, dos Dead Moon ou o resgate dos fabulosos Stape Singlers.
Mas não é (para já) da editora que importa falar; antes da projecção, bem como da “aula” que a acompanhará. “Vai ser muito fragmentada, aponta para várias direcções”, responde o editor e, agora, realizador. “Tem imagens de arquivo de artistas importantes de r&b e gospel, como James Brown, Rosetta Tharpe, Willie Dixon, Skip James, Rev. Louis Overstreet, Bo Diddley, Nina Simone e as Ronettes. Tem alguns excertos das primeiras gravações feitas no Estados Unidos. E vou projectar muitas fotografias enquanto descrevo episódios dos 150 anos da indústria discográfica."
Um ponto de vista domina a montagem das imagens e a construção da narrativa, como aliás o título vem sublinhar. Há uma assinatura e uma experiência. Eric Isaacson cresceu na Costa Oeste, apaixonado pelas canções dessas décadas primordiais da música popular americana, que ia apanhando na rádio e, depois, nos discos que foi coleccionando. “Os meus preconceitos insinuam-se. Não sou fã da música da minha infância e da minha adolescência, a pop dos anos 80 e 90, por isso a visão desses tempos é um pouco sombria. Tendo a romantizar os finais dos anos 20, os finais dos anos 50 até aos anos 60. Haverá quem se sinta incomodado, mas eu acredito que é impossível ser imparcial. Ninguém consegue manter-se imóvel num comboio em andamento."
Respeitar o passado
Procurar na sessão referências a obras importantes do cinema documental pode ser inútil. Eric foi segurança, lavador de pratos, cozinheiro e empregado em livrarias e lojas de discos até que, um dia, decidiu criar o seu próprio emprego, erigindo a Mississippi Records. O seu percurso fez-se com e entre os discos, longe do mundo do cinema documental ou do filme experimental (só há pouco tempo, confessa, viu Rock my Religion, de Dan Graham). Por isso, as suas referências vêm de lugares menos canónicos: dos documentários de Adam Curtis, do trabalho do Museum of Jurassic Technology, na Califórnia, da série Cosmos, de Carl Sagan, ou de livros sobre Alan Lomax ou Nikola Tesla.
Verdadeiro amante dos discos em vinil, rejeita para a sessão qualquer fim pedagógico ou científico. A inspiração (negativa) veio do esquecimento a que os vinis foram sendo votados com o aparecimento de novas tecnologias de reprodução, edição e difusão. “Comecei a comprar vinil nos finais dos anos 80 porque era o formato mais barato, não porque tinha um som melhor ou capas bonitas. Mas por volta de 2009 as coisas mudaram e os discos começaram a ser vendidos como objectos de luxo. Para mim, não foram boas notícias." O negócio ressentiu-se e Eric teve dificuldades em manter os preços baixos, mas permaneceu fiel ao formato. “Limitei-me a respeitar o passado. Para mim, é um crime deitar fora 120 anos de discos ou gira-discos e comprar a tecnologia que a indústria nos diz para comprar. A informação musical que os vinis guardam ainda triunfa sobre os CD e a Internet juntos. É ridículo pensar que só porque uma tecnologia é a mais nova é, também, a melhor."
Numa entrevista à Complex, uma publicação digital, Eric lamentava a facilidade com que as pessoas se libertam dos seus discos, indiferentes à alma e ao amor que outros tinham empregado para os fazer. “Espero divertir as pessoas, mas concebi esta apresentação para colocar os discos num contexto histórico que os honre como veículos de ideias com um grande poder. Mais do que homenagear contribuições individuais, vou pintar, com pinceladas largas, uma história das gravações discográficas. Afinal só tenho 90 minutos [risos]."
Uma história sem fim
Também por causa da falta de tempo, A Cosmic and Earthly History of Recorded Music according to Mississippi Records não sai dos Estados Unidos. É uma história americana aquela que conta. “Acho que foi aqui que nasceu a indústria musical, num país há décadas desgraçado por políticas horríveis, racismo e pobreza. Se calhar, fizemos alguma da melhor música de sempre como reacção a essa realidade. Mas rejeito a ideia de que o berço do rock ou do blues são os Estados Unidos. Desde o seu nascimento que a música americana se fez entre a Europa e África."
Não é difícil, portanto, pôr em diálogo as imagens do arquivo da Mississippi Records com os ourtos filmes do ciclo. A história dos discos que Eric tem resgatado é também uma história da música popular de que fizeram parte Alan Lomax, John Fahey ou o colectivo hippie e religioso The Source Family. De fora parece ficar O Povo que Canta (2003), mas o filme de Ivan Dias e Manuel Rocha descobre um duplo em The Songhunter, de Rogier Kappers. Se este revisita os lugares que Lomax percorreu, o filme português reconstitui o roteiro que Michael Giacometti palmilhou antes de dar a ver e a ouvir o seu Povo que Canta (1970). Para lá de geografias, o gosto pelo acto da recolha musical e a vontade de investigar e documentar as origens da folk ligam os cinco filmes. Mas, num vívido segundo plano, é a paisagem cultural e social americana que se agita com as suas crónicas dramáticas e redentoras (em In Search of Joe Death: The Saga of John Fahey, de James Cullingham) ou surpreendentes (na música e nos cultos documentados em The Source Family).
Entretanto, Eric Isaacson confessa que não se sente muito impressionado com boa parte da música actual e, a julgar por uma frase que se pode ler no material de promoção do seu filme, advinham-se as razões. “Quando escrevi que o rock e outros géneros musicais estavam a ser destruídos, referia-me à influência das grandes editoras. Elas subsumem a estética dos movimentos underground. Impedem que qualquer movimento se transforme numa cultura. Em vez disso, usam-nos para criar produtos. Os movimentos underground são como cogumelos, precisam da sombra para crescer. Quando demasiado expostos e comercializados, enfraquecem." Resta ao editor o optimismo sobre o passado da música americana. Mantém-se imperturbável. “Acho que os Estados Unidos ainda estão cheios de grande música e de grande arte que continuam por descobrir. Todas as semanas tropeço em música e imagens de arquivo fabulosas, ou num disco que não conhecia. Estou constantemente a descobrir novas gravações. Não tem fim."