As primárias no PS, a reforma institucional e a ideologia

Os competidores que se apresentam a sufrágio nunca são apenas julgados pelas suas propostas, são-no também pela sua atuação concreta anterior.

Uma análise mais cuidada das duas moções, em matéria de combate às desigualdades e de políticas sociais, empreendida pela politóloga Rita Ferreira (PÚBLICO, 22-8-2014), veio contrariar as teses da maioria dos comentadores: «até agora, nesta área, não sendo divergente, António Costa foi bastante mais claro do que António José Seguro na afirmação de um dos principais princípios do socialismo democrático.» Com o presente artigo, eu gostaria de acrescentar duas dimensões fundamentais para caracterizar o posicionamento estratégico e ideológico dos dois candidatos. Por um lado, quer no caso dos partidos políticos quando se apresentam a eleições, quer no caso dos candidatos às lideranças partidárias, os competidores que se apresentam a sufrágio nunca são apenas julgados pelas suas propostas, são-no também pela sua atuação concreta anterior. Por outro lado, há o tema da reforma do sistema eleitoral que, embora não seja efetivamente um tema de conflito entre a esquerda e a direita, tem claras implicações para o posicionamento ideológico do PS, nomeadamente porque impende sobre a política de alianças. Também aqui há diferenças entre AC e AJS, que procurarei evidenciar.

Comecemos pelo lastro histórico de AJS, seja em matéria de oposição ao governo, seja em matéria de política de alianças. Desde 2011 temos vivido sob a tutela da Troika, na linha do Memorando de Entendimento assinado pelo PS mas com a claríssima anuência do PSD e do CDS-PP. Naturalmente, este enquadramento veio retirar margem de manobra ao PS, fosse qual fosse o seu líder. Porém, por outro lado, qualquer líder que fosse tinha também o compromisso assumido por Sócrates para com os seus eleitores de que não acompanharia medidas (do PSD) além do acordo da Troika (de 2011) para ganhar alguma margem de manobra face ao governo. Por tudo isso, e tendo em conta que a direita tem governado sempre muito além do que estava no memorando (nos cortes de salários e pensões, no aumento da jornada de trabalho, nos cortes na educação e na saúde, na promoção da desregulação no mercado de trabalho, etc.), é curiosa a tibieza da oposição do PS, sob a batuta de Seguro, ao governo: até ao final de 2012 o PS aprovou (58,3%) ou absteve-se (25,0%) na esmagadora maioria das votações das propostas da direita no Parlamento. É certo que a partir da manifestação face à TSU, em Setembro de 2012, o PS começou a divergir mais (votando contra os orçamentos, encabeçando pedidos de fiscalização constitucional, etc.) mas, mesmo assim, continuou sempre disponível para entendimentos com o governo (no corte na despesa pública, que depois não se concretizou, ou na reforma do IRC, fazendo recair os custos do ajustamento quase só sobre os assalariados e pensionistas, em sede fiscal). Ou seja, perante um governo e uma maioria que têm governado em violação dos compromissos eleitorais assumidos, contra a Constituição e com resultados desastrosos (a divida pública está quase em 140% do PIB, apesar de todos os cortes de salários e de pensões e da venda de «n» empresas públicas, muitas delas bastante lucrativas), o PS liderado por Seguro foi incapaz de se diferenciar claramente da direita. Portanto, em matéria de posicionamento ideológico do PS, sob a batuta de Seguro, e da sua capacidade de fazer oposição, estamos conversados. Claro que neste domínio a comparação com Costa é injusta para Seguro porque não é possível comparar a atuação do líder de um partido, nas condições difíceis dos últimos três anos, com as tomadas de posição do Presidente da Câmara de Lisboa (CML), seja no exercício deste cargo, seja como comentador na TV. Mas, reconhecida a «injustiça», é impossível fazer vista grossa ao registo de Seguro. Mais, até a narrativa sobre a genealogia da crise (defendida pela direita nacional e europeia), que punha a sílaba tónica das causas da crise em fatores domésticos (ou seja, no PS sob a batuta de José Sócrates) e que tem sido desmentida por vários académicos (Mark Blyth, Philipe Legrain, Wofgang Streecht, Paul de Grauwe), o PS de AJS pareceu ter «comprado»… Caso contrário, como explicar o apagamento do partido nos últimos três anos?

Mas ao contrário do tema anterior, em matéria de política de alianças e de reforma do sistema político é possível comparar AC e AJS, e tal pode ter consequências fundamentais em termos do posicionamento ideológico do PS. Primeiro, temos a capacidade de AC para promover entendimentos à esquerda na CML. Primeiro, fez uma coligação minoritária com BE, 2007-2009, e com os Cidadãos por Lisboa/CPL (o PCP recusou sempre, daí a solução minoritária), a qual foi denunciada antes do terminus do mandato pelo Bloco. Em 2009, Costa voltou a desafiar insistentemente a esquerda radical, em público e de forma convincente, para um entendimento. Não conseguiu: BE e PCP recusaram; fez aliança só com o CPL. Porém, o eleitorado pareceu compreender a situação e a partilha de responsabilidades quanto ao colapso da solução «esquerda plural» e devolveu-lhe uma maioria absoluta. Pelo contrário, Seguro tem sido incapaz de promover entendimentos com os partidos à sua esquerda: nas autárquicas de 2013 pareceu querer encetar um tal compromisso, mas fê-lo de forma não convincente (numa carta, publicamente anunciada, enviada a Jerónimo e a Louçã); nas europeias nem tentou; no Parlamento, nem sequer foi capaz de promover convergências em matéria de fiscalização constitucional, pelo contrário, tentou desfazê-las. Recordemos que, quando deputados do PS e do BE encetaram um pedido de fiscalização constitucional ao orçamento de 2012, sobre os cortes de salários e pensões, e que veio a revelar-se bem-sucedido no TC… AJS o que fez foi tentar demover os parlamentares do PS da iniciativa. Terceiro, em matéria de reforma do sistema eleitoral a proposta populista (porque todos os estudos demonstram que Portugal não tem deputados a mais; e porque uma poupança equivalente mas sem efeitos potencialmente nefastos do ponto de vista da representação política poderia ser feita no financiamento das campanhas) de Seguro para a redução do número de deputados, como ponto de partida (e não como eventual moeda de troca, limitada, no final de uma negociação…), torna ainda mais difíceis quaisquer entendimentos à esquerda. Pelo contrário, neste domínio Costa tem sido muito mais cauteloso e cético quando a uma redução (pelo menos substancial) do número de deputados. Finalmente, em matéria de cenários de governo, caso o PS não tenha maioria absoluta, Seguro passa a ideia de que tanto lhe faz governar com a esquerda ou com a direita, os militantes que decidam por ele: «E para que tudo seja totalmente claro, e na mera hipótese da necessidade de um Governo de coligação, assumo o compromisso de efetuar um referendo aos militantes do PS». Pelo contrário, Costa assume com alguma assertividade a necessidade imperiosa de confrontar a esquerda radical para a assunção de responsabilidades governativas: «O tão abusado conceito de “arco da governação” não pode servir para justificar a exclusão sistemática de certos partidos da responsabilidade de governar. É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país e não há qualquer razão para o PS ignorar as aspirações dos eleitores representados pelos partidos à sua esquerda. Os apelos ao consenso e ao compromisso não podem ser instrumentalizados, como já foram, para tentar proteger as políticas do atual governo para lá de futuras eleições.»

Mas por que é que a política de alianças, e até a reforma do sistema eleitoral (um tema que terei de deixar para uma próxima crónica), são importantes para definir o posicionamento ideológico do PS? Porque como demonstram claramente Wolfgang Merkel e os seus colegas, no livro de 2008 Social Democracy in Power: The Capacity to Reform, um dos fatores fundamentais para explicar o posicionamento ideológico dos partidos socialistas é a sua política de alianças. Daí que Merkel fale numa «social-democracia liberalizada» lá onde os socialistas fazem amiúde coligações com a direita (como no caso da Holanda, onde desde 1994 que os trabalhistas, PvdA, fazem permanente alianças com a direita liberal, VVD), ou onde o sistema eleitoral permite que inflexões pronunciadas dos trabalhistas para a direita não sejam contrariadas pela entrada de novas forças à esquerda pois o limiar de acesso é altíssimo. Pelo contrário, o tradicional alinhamento à esquerda do PSF é explicado no livro pelas alianças governativas frequentes dos socialistas franceses com a esquerda radical e os verdes.       

Politólogo, ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)

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