O encanto do silêncio: James Blake na despedida (esgotada) do Vodafone Paredes de Coura

Ao longo de quatro dias passaram pelo festival cem mil espectadores. Foi a edição mais concorrida de sempre. Sábado, na despedida, o Vodafone Paredes de Coura esgotou e foi fiel à sua identidade. Seguiram-se com devoção os aguardados James Blake e Beirut, levaram-se para casa duas descobertas a seguir atentamente, os Goat e os Growlers

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Growlers Paulo Pimenta
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James Blake Paulo Pimenta
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Não havia outros concertos entre Beirut e o que se seguiria. James Blake, provavelmente o nome mais aguardado do festival, estava a chegar e a euforia com que é recebido é quase paradoxal, tendo em conta a forma como a sua música se move nos espaços entre o silêncio. Ao longo de quatro dias, o Vodafone Paredes de Coura foi terreno de muito mosh, muito crowd-surf, muita efusividade quando as guitarras soavam mais alto. Mas o público do festival é curioso e nada fundamentalista, abraça a diversidade. Não surpreende portanto que tenha feito transbordar o palco secundário, o Vodafone FM, para descobrir uns suecos Goat que são um delirante ritual tribalista com guitarras ardendo na reverberação do wah-wah e tenha seguido, ainda com os ouvidos a zumbir de prazer, para a volta ao mundo em trompete, trombone, tuba, acordeão ou ukulele de Beirut – e que, depois, tenha seguido atentamente a música feita espaço íntimo de James Blake, ele da voz caída em dor, do quase sussurro à expressividade de uma soul espectral, esquelética.

Essa diversidade e a generosidade do público perante a descoberta e as várias matizes da música popular urbana são uma das marcas do Vodafone Paredes de Coura. Confirmámo-lo numa edição histórica para o festival. Pela primeira vez, registou-se lotação esgotada (28 mil espectadores). Aconteceu sábado, na despedida, e James Blake e Beirut foram os principais responsáveis, mas não os únicos protagonistas a juntarem-se aos dos três dias anteriores (a história do festival far-se-á de Janelle Monáe e Cage The Elephant, que vimos quarta-feira; de Mac DeMarco, Franz Ferdinand, Thee Oh Sees ou Seasick Steve, destaques numa quinta-feira particularmente recheada de pontos altos; dos Black Lips e da sua festa juvenil de rock’n’roll na sexta, no palco principal).

Um cantautor do século XXI
James Blake elogiara a beleza do festival e da zona onde se insere. Olha tímido o público perante si: “Acho que consigo ver-vos a todos”, diz. Estávamos no início do concerto e estávamos entre a multidão, ouvindo como atrás de nós, à nossa frente, ao nosso lado, eram tantos os que reconheciam as canções ao primeiro verso. Cerca de uma hora e meia depois, James Blake está já sozinho em palco. Dispensara o baterista e o guitarrista/teclista que o acompanharam para se despedir a sós. Quer incluir o público na interpretação, gravando um sample no momento certo de Measurement, a canção derradeira. Tenta uma, duas, três, quatro vezes. Não conseguirá o desejado (não se ouvem palavras, nada que seja samplável, apenas um grito conjunto, indistinto, da multidão). Desiste. Continua sozinho. “Please fall down, testing sounds / For the deaf and the forest cold”, canta, reunindo camada sobre camada de voz até que, na harmonia que se cria, ouvimos um gospel fantasmagórico, espectral: as luzes baixam e quando iluminam novamente, James Blake já abandonou o palco mas ouvem-se ainda as vozes.

Não foi o final de concerto esperado, mas talvez faça mais sentido assim: a intimidade desta música, esta insularidade da James Blake, nascida de uma certa angústia e um óbvio desespero, vive em isolamento e assim se revela melhor. Não juntámos a nossa voz à do inglês de 26 anos, autor de James Blake e Overgrown. Ouvimo-lo. Deixámos de o ver. Continuámos a ouvi-lo.

Verdadeiramente um cantautor do século XXI, James Blake, com a sua música ora rarefeita de elementos, ora procurando fuga e refúgio na intensidade do ritmo (os subgraves do dubstep, a apelo físico do techno), conseguiu a proeza de manter quase três dezenas de milhares em suspenso. Electrónica de coração na boca, uma fragilidade a que é impossível ficar indiferente. Ouviu-se Limit to your love, a versão da canção de Feist, ouvimo-lo interpretar Overgrown, canção enublada como o era a música saída de Bristol na década de 1990, e percebemos como se sente nele a mesma vontade de “ser” verdadeiramente  a canção que reconhecíamos na lendária Nina Simone (isto apesar de Overgrown, curiosamente, ser inspirada por Joni Mitchell).

Ao longo do concerto, ora apoiado pela guitarra, e ei-lo chegando aos mesmos abismos folk de Jeff Buckley, ora submergindo entre a cadência rítmica que é dubstep pelos elementos, mas uma outra coisa, iminentemente pessoal, quando lhe apõe a voz feita exposição dos tormentos da alma, James Blake sorriu tímido perante os aplausos, semicerrou os olhos quando as palavras tocavam mais fundo, dançou sentado, tronco movendo-se ao sabor da notas extraídas das teclas do órgãos e sintetizadores. Nuns e noutros momentos, vimo-lo sempre como alguém que procura salvação na música, que busca nela um antídoto para uma insatisfação impossível de aplacar. Foi tocante como “torch song”, foi hedonismo desesperado procurando salvação na dança. Com James Blake, o silêncio foi de ouro em Paredes de Coura. Ainda mal tinham desaparecido as harmonias vocais sampladas que deixara a ecoar e, no palco Vodafone FM, começava o fim de festa. Eram os 1-800 Dinosaur, e James Blake lá estaria novamente, integrado neles, servindo de mestre-de-cerimónias do adeus à edição 2014 do Vodafone Paredes de Coura.

Admirável carrossel psicadélico
Quem dançava de madrugada, recordaria ainda a visão no palco principal desse admirável carrossel psicadélico chamado Growlers, que chamou os famosos miúdos em fato de crocodilo a juntar-se-lhes em palco, que os mandou sentarem-se quietinhos, que ordenou que saltassem para junto do público enquanto continuava aquela fanfarra etilizada, voz nasalada de Dylan sobre marchas voodoo, sobre dub como se recriado por Ray Manzarek – os Growlers são canções de marinheiros sem mar à vista, são fogo-fátuo erguendo-se sobre as cinzas dos sonhos ácidos da década de 1960; os Growlers foram uma surpresa que gostaríamos de reencontrar brevemente.

Tal como os supracitados Goat, festim de rock feito excesso psicadélico (o dos Hawkwind, por exemplo), suecos que deixaram rendidos todos aqueles que lotaram a imensa tenda onde está instalado o palco Vodafone FM. Duas guitarras, duas vocalistas feiticeiras de túnica e cocar na cabeça, um baixista, um baterista e um percussionista: África e América Latina e rock’n’roll do Ocidente. Saímos do circo psicadélico dos Growlers e aterrámos nesta tão improvável World Music (o título do álbum de estreia da banda) inventada na Suécia. Música feita transe. Inventou-se uma nova religião e, agora, somos todos devotos dos Goat. 

Além do magnífico local onde se instala e além das boas condições oferecidas ao público, quer no recinto dos concertos, quer na zona de campismo; além da forma como a vila se foi tornando, cada vez mais, personagem indispensável do festival e do bálsamo que é conseguir ser festival de massas sem que o público seja sujeito à pressão publicitária constante, tão típica da cultura de massas; além de tudo, dizíamos, esta capacidade de surpreender com o novo, confiando na curiosidade perante o desconhecido do público, é uma das marcas mais meritórias do Vodafone Paredes de Coura.

Vê-se Kurt Vile, que um par de anos tocara para público escasso no palco secundário, chegar agora ao palco principal, ao fim da tarde, para mostrar a sua música de raiz americana que é agora mais definida, verdadeiramente de banda – perde-se o mistério e a folk como farrapos sonoros de ontem, ganha-se em intensidade. Vemos, depois de Kurt Vile, Hamilton Leithauser, vocalista dos Walkmen, mostrar a nova vida de crooner pop enfiado em fato muito elegante. Ouvira-se o frenesim dos The Dodos, no palco secundário, e o festim multiforme dos Sensible Soccers que esperamos ver, numa próxima edição, em horário nocturno consentâneo com esta música  lúdica (o corpo não resiste ao ritmo) e cerebral (há sempre tanto a acontecer e as sinapses não têm descanso para descodificar tudo o que se passa).

“Nunca pensei que estivesse aqui tanta gente, tanta gente bonita”, exclamou Sequin, ou seja Ana Miró, pouco depois de entrar Palco Vodafone FM para continuar a apresentar o seu álbum de estreia, Penelope. Era o primeiro concerto do último dia. E sim, estava muita gente. O Paredes de Coura esgotado esperava James Blake. Esperava as canções de cantautor indie com a música do mundo inteiro na cabeça que chegaria com os Beirut.

A banda de Zach Condon é um daqueles casos em que o Portugal musical é pródigo: um culto que cresce até se tornar massivo e que passa de culto a devoção incondicional. O sentimento, de resto, é recíproco. A banda elogiará o espaço que a envolve e a singularidade do festival. Contará que andou a banhos, durante a tarde, no rio Coura. E Zach Condon, agradecendo cantando, sussurra alguns versos do Leãozinho de Caetano Veloso. Ouviu-se Postcards from Italy, logo a início, ouviu-se Scenic world, ouviu-se esta banda de músicos americanos tão deslumbrados quanto versados na riqueza da música que existe mundo fora. São fanfarra balcânica recriada por mariachi mexicano, são balanço brasileiro nordestino e balada folk extraída das profundezas da América, são Zach Condon, um cantautor devoto do formato canção da sua terra a cobri-lo de exotismos variados até que o exotismo desaparece para dar lugar à canção, simplesmente.

É mais um caso de amor entre público e intérprete. Mais um caso de amor em Paredes de Coura. Zach Condon agradece com sorriso aberto, o público responde como respondeu sempre ao longo do concerto, com aplausos prolongados, emocionados. Pouco a pouco o Vodafone Paredes de Coura começava a despedir-se. Esperamos que o rapaz da corrida acelerada não tenha perdido pitada.   

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