Caminhos da saúde em Portugal

Devemos partir para uma cada vez mais efectiva participação dos farmacêuticos comunitários.

Como o recente Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde veio confirmar, este esforço já superou largamente a capacidade económica dos operadores, produzindo efeitos colaterais graves, traduzidos por insolvências, penhoras, suspensões de fornecimentos, despedimentos, precariedade e um desinvestimento generalizado no sector. Segundo o citado Relatório, a margem das farmácias e grossistas, em conjunto, reduziu 334,1 milhões de euros em apenas 3 anos, suplantando em muito o objectivo estabelecido no Memorando de Entendimento entre o Estado português e a troika.

É neste contexto que, pelo terceiro ano consecutivo, o Ministério da Saúde (MS) volta a convocar a indústria farmacêutica para uma nova contribuição, visando, uma vez mais, reduzir a despesa pública com medicamentos. Lamentavelmente, constata-se que o recurso a este mecanismo administrativo, de carácter excepcional, está a tornar-se sistemático. De acordo com a APIFARMA, nos últimos anos, ao abrigo de protocolos assinados com o MS, as indústrias farmacêuticas proporcionaram ao SNS uma poupança acumulada superior a 800 milhões de euros.

Esta é uma via fácil para reduzir a despesa pública e produz resultados imediatos. E é também uma via fácil para, na ausência de medidas estruturais ou medidas de outra natureza, o Estado, a meio do ano, ajustar compulsoriamente a despesa aos seus objectivos orçamentais. Mas, indiscutivelmente, o seu uso recorrente tem efeitos gravemente perversos. Pois atinge alicerces da viabilidade empresarial. Despromove a estabilidade e a previsibilidade no sector, que são valores vitais para os operadores. E não constitui, obviamente, uma abordagem estrutural do Sistema de Saúde, na verdadeira acepção reformista e equilibrada do conceito “estrutural”.

É sabido que, em saúde, a tensão sobre a despesa é primordialmente determinada por factores como a inovação tecnológica, o aumento do rendimento e o envelhecimento da população. É assim em Portugal e nos outros países. Perante esta realidade e tendo presente a imperiosa necessidade de controlo da despesa pública, impõe-se escolher permanentemente o caminho das “reformas estruturais”, visando racionalidade e a utilização mais efectiva dos recursos disponíveis, como, aliás, temos vindo a propor. Sendo este um caminho difícil, é indubitavelmente o que melhor serve os interesses do País e dos cidadãos.

2. A reforma do modelo de organização e funcionamento do Sistema de Saúde insere-se precisamente neste caminho positivo e virtuoso. E constitui, sem dúvida, matéria de elevado relevo, em que em Portugal muito ainda está por fazer. Por isso mesmo, atribuímos a maior importância ao acordo recentemente celebrado entre o MS e as farmácias, que estabelece “os princípios orientadores relativos à implementação dos serviços a desenvolver pelas farmácias no âmbito dos programas de Saúde Pública e do seu contributo para a evolução do incremento da dispensa de medicamentos genéricos”.

Entendemos o acordo agora celebrado como o início de uma nova era, marcada por uma nova atitude dos decisores políticos em relação às farmácias e aos farmacêuticos, que obviamente saudamos. Muito nos apraz registar que o MS, a exemplo de outros países, queira promover a utilização efectiva da capacidade instalada no Sistema de Saúde português ao nível das farmácias. A distribuição homogénea das farmácias no território nacional proporciona uma cobertura assistencial da população ímpar entre todos os prestadores de saúde, sejam públicos ou privados.

Finalmente, o MS passa a olhar mais atentamente para as farmácias, e para os milhares de farmacêuticos que aí exercem, como parceiros que podem dar contributos substantivos para promover ganhos em saúde e para alcançar as metas, incluindo as de natureza económica, definidas pelas políticas públicas.

Há muito que defendemos insistentemente que o País deve apostar e investir no reforço das competências legais dos farmacêuticos e no alargamento da sua intervenção no Sistema de Saúde, em benefício dos cidadãos. Como temos afirmado, não obstante a qualificação e a capacidade técnica e científica dos farmacêuticos e não obstante a sua intervenção junto da sociedade muito ter contribuído para o progresso do País e para o bem-estar dos cidadãos, o facto é que todo esse valioso e intangível capital profissional é muito superior à utilização efectiva que a sociedade dele faz. É uma subutilização que deriva de diversas ordens de razões, como o enquadramento legal, a inércia procedimental e a vontade política, que se impõe rever e alterar.

Estão agora criadas condições objectivas para que o Sistema de Saúde e os portugueses possam usufruir do potencial técnico-científico dos farmacêuticos comunitários e da sua proximidade com a população. Há, contudo, um longo caminho que, todos juntos, devemos percorrer. A prestação de serviços farmacêuticos no âmbito de programas de saúde pública, de forma estruturada e reconhecida pelo Estado como um contributo relevante, deve constituir o ponto de partida para uma cada vez mais efectiva participação dos farmacêuticos comunitários seja nos cuidados primários de saúde, seja no acompanhamento dos doentes crónicos, num quadro de gestão integrada da doença com particular enfoque na gestão da terapêutica. Os farmacêuticos saberão, uma vez mais, estar à altura das suas responsabilidades e dos desafios que têm pela frente.

Como há muito vimos afirmando, as farmácias são verdadeiras unidades prestadoras de cuidados de saúde dotadas de profissionais altamente qualificados, que, a exemplo de outros países, podem e devem dar mais e melhores contributos ao Sistema de Saúde.

Importa, pois, prosseguir este caminho reformista do modelo de organização e funcionamento do Sistema de Saúde. Para que o País não persista num desperdício social, que assume especial importância precisamente se tivermos em conta o actual contexto económico e social.

A Ordem dos Farmacêuticos tem estado e estará nessa senda, sempre com a devida salvaguarda dos deveres deontológicos dos farmacêuticos.

Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e Professor da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto

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