Fiquem todos calmos que isto não é um assalto, apenas uma crónica sobre “Pulp Fiction”, um filme de 1994, escrito e realizado por Quentin Tarantino.
“Pulp Fiction” é, definitivamente, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. Tenho outros na minha “shortlist”, mas este teve um impacto especial. Primeiro, porque o vi pela primeira vez com 15 anos, uma idade onde ainda estamos a descobrir o mundo. Depois, porque, objectivamente, este é um filme emocionalmente forte e criativamente revolucionário (um “game changer”). E a marca indelével que me deixou sei que é partilhada por muita gente da minha geração. Como se costuma dizer, há um antes e um depois de “Pulp Fiction”.
Embora seja um filme sobre bandidos e violência, este é um filme de texto. Sim, é um filme muito bem representado, com um casting magnífico (os actores parecem feitos para as personagens), uma direcção de actores irrepreensível e uma montagem e realização inovadoras (a sequência do filme não coincide com a cronologia da história). Mas é o texto e o enredo cativante e original (onde se mistura o drama, o suspense e o humor) que o distingue dos demais (mesmo de outros Tarantinos) e que o elevou a um patamar único (não é por acaso que ganhou Cannes). Os diálogos que as diversas personagens interpretam são memoráveis e não é por acidente que alguns estão incluídos no álbum da banda sonora. O humor negro misturado com filosofia e crueza conferem ao texto um sabor único e inesquecível.
Partindo da ideia banal de seguir as peripécias na vida de uns fora-da-lei (Bruce Willis como Butch, um pugilista em fim de linha que engana um mafioso; Samuel L. Jackson como Jules, um bandido que cita a bíblia antes de matar os inimigos e que sofre uma epifania que o leva a abandonar a vida do crime; John Travolta como Vincent Vega, um bandido acabado de regressar de Amesterdão que faz parelha com Jules para tratar de uma cobrança difícil; Harvey Keitel como Mr. Wolf, um gangster engravatado que resolve problemas de última hora; Uma Thurman como Mia Wallace, a sensual mulher do chefe que gosta de dançar e de drogas; ou Ving Rhames como Mr. Wallace, o chefe mafioso, de voz cavernosa, que vai passar por um mau bocado...), o filme dá tantas voltas criativas que o resultado final tem pouco a ver com gangsters, tudo a ver com a profundidade das personagens e a complexidade da vida e dos seres humanos.
A banda sonora (com músicas dos anos 60, ora soul, ora funk, ora surf rock) também é inesquecível. O disco ouve-se, de uma ponta à outra, sem darmos pelo passar do tempo. Não só as músicas valem por si como nos remetem para as cenas do filme em que aparecem, tornado a sua audição uma experiência única.
Como um fã que se preza, já perdi a conta às vezes que vi o filme e posso dizer que o sei quase todo de cor. Quero dizer, conheço as cenas todas e ainda consigo recitar alguns dos diálogos (até tenho o argumento do filme em livro).
Hoje o filme é uma obra de culto. Não só para os seus fãs como para os cinéfilos e mesmo para muitos realizadores que lá foram beber inspiração para criações suas.
Quem ama o filme não esquece a intensidade do mesmo nem as inúmeras cenas antológicas. Citar algumas (como aquela em que Mr. Wallace tenta subornar Butch a desistir no quinto assalto dum combate de boxe, ou a outra em que Vega e Jules interrompem o pequeno-almoço de uns pequenos traficantes de droga para cobrar uma dívida, ou ainda outra em que Mr. Wallace e Butch são aprisionados na cave de uma loja, atados a cadeiras e amordaçados para verem um polícia tarado a jogar com eles ao pimpampum de forma a decidir qual dos dois vai violar primeiro) serve apenas de exemplificação pois que são todas boas e cada um terá as suas favoritas.
Quem ainda não viu o filme tem de o ver do princípio ao fim para poder apreciar a obra (e, já agora, para entender a primeira frase desta crónica). Quem é fã, pode deliciar-se com os excertos, fixar-se nos pormenores, deixar-se levar pela música e ser, sempre, transportado para a ambiência mágica e única desta ficção com muita polpa.