Debaixo do vestido, somos todos iguais

Os transexuais estão na moda? Na Broadway, em Nova Iorque, dois musicais confundem a cabeça dos espectadores e divertem-se a trocar as voltas aos clichés.Kinky Boots e Hedwig and the Angry Inch trouxeram de volta as plumas, as lycras e as lições de vida ao coração do musical norte-americano

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BillY Potter recebeu o Tony para melhor actor em 2013 com Kinky Boots REUTERS/O&M Co./Matthew Murphy/Handout
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Jerry Mitchell, Harvey Fierstein e Cindy Lauper, os autores de Kinky Boots REUTERS/O&M Co./Gavin Bond/Handout
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A fachada do Belasco Theatre, em Nova Iorque Derek Storm/Splash News/Corbis
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Neil Patrick Harris venceu o Tony como melhor actor em 2014 por Hedwig and the angry inch Joan Marcus

Lola é... “alguém muito ofendido por se duvidar do que [sou]”. Lola é uma personagem de ficção, uma drag queen, homem negro em cabeça de mulher, imenso, de pernas feitas ao tamanho das botas que usa, perversas, vermelhas, como devem ser. “Não são botas, são sexo, honey”, diz ela durante o espectáculo que pode ser visto no Al Hirschfeld Theatre, em Nova Iorque. 

Esta Lola, tal como a vemos, não existe e, no entanto, é à sua volta que se constrói Kinky Boots, o musical que estreou há um ano e que adaptou o filme britânico de 2005, por sua vez inspirado na história real de como uma drag queen salvou uma fábrica de sapatos de fechar no interior da Inglaterra conservadora e profunda. Lola “is... well, Lola”, porque, como diz a canção, whatever Lola wants, Lola gets...

Vencedor de seis Tony na edição de 2013 dos mais importantes prémios de teatro norte-americano, marcou o regresso do dramaturgo Harvey Fierstein aos vestidos e às lantejoulas - recuperando o sucesso que havia conseguido em 1983 quando criou La Cage aux Folles -  e assinalou a estreia da cantora e compositora Cindy Lauper na Broadway.

Ao New York Times, na altura da estreia, Harvey Fierstein explicava que vira em Cindy Lauper a oportunidade "de trabalhar com alguém com uma paleta musical enorme, alguém capaz de escrever música de discoteca e canções para espectáculo”.

As True colors de Kinky Boots - para usar o título de uma das mais famosas canções da Cindy Lauper -  vão para além do vermelho das botas, e foi isso que, com o tempo, convenceu a imprensa que olhava para este musical e desconfiava da dificuldade em criar um single que pudesse ser cantado nas ruas e passado nas rádios.  Do mesmo modo, a inteligência do espectáculo está em recusar criar efeitos visuais para contar uma história que, em certa medida, toca – tal como em Billy Elliot uns anos antes – em questões que costumam estar arredadas do palco e da cultura do entretenimento na qual a Broadway é especialista: crise económica, ameaça de desemprego, segregação racial e sexual e disforia social.

A eficácia do espectáculo não resulta apenas das coreografias de Jerry Mitchell e da inteligência cenográfica que, numa espantosa economia de recursos, consegue criar de um tronco comum: a fábrica de sapatos Price & Son; o clube onde Lola actua; o bar onde se jogam as rivalidades marialvas; o lar onde Lola encontrará o pai que antes a havia recusado e a fábrica de sonhos e ilusões que é a Semana da Moda de calçado em Milão onde a esperança daqueles trabalhadores será renovada.

A galeria de personagens não será mais bizarra do que aquela que se senta na plateia para os ver. “Homens, mulheres, e aqueles que ainda não decidiram”, de um lado e do outro, numa viagem de aprendizagem e descoberta que deixa cair fachadas de preconceito através da gargalhada e ergue, no seu lugar, laços de fraternidade que resistem à facilidade da crítica e da denúncia gratuita e judiciosa.

 

Um falso café-concerto-rock

A presença de transsexuais, travestis ou drag queens na história do teatro musical norte-americano, se rara, é de sucesso. The Rocky Horror Show (1973), La Cage aux Folles (1983, estreada em Portugal por Filipe la Féria em 2010 com o nome A Gaiola das Malucas), Victor/Victoria (1995), Hairspray (2003), Priscilla, Rainha do Deserto (2011) e recentemente Kinky Boots (2013) e Hedwig and the Angry Inch (2014) exemplificam uma relação de cumplicidade que, para mais, e pelo seu potencial imagético, saltou com facilidade as fronteiras do palco e do cinema, sendo todas adaptações de filmes ou, mais tarde, adaptadas ao cinema.

Do mesmo modo, a exigência dos papéis pede a excelência da interpretação e, com excepção de Tony Sheldon (Priscilla, Rainha do Deserto), todos os protagonistas destes musicais levaram para casa o Tony de melhor actor. La Cage aux folles cometeu ainda a proeza de ver os protagonistas das versões de estreia (George Hearn, 1983) e remontagem (Douglas Hodge, 2010) sagrarem-se vencedores. Harvey Fierstein (Hairspray), Billy Porter (Kinky Boots) e Neil Patrick Harris (Hedwig and the Angry Inch) completam a lista, já que Julie Andrews rejeitou a sua nomeação por Victor/Victoria considerando injusto ser a única de toda a produção.

Do outro lado da Quinta Avenida, “que nem sequer é Broadway, é East Broadway, vamos dizer Ebay”, no Belasco Theatre (aquele onde se passa a acção do filme Balas sobre a Broadway), está então Hedwig and the Angry Inch, que esta quarta-feira terá novo rosto com a entrada de Andrew Rannells para substituir o vencedor de um dos quatro Tony, Neil Patrick Harris – os outros foram para melhor remontagem, actriz secundária e direcção artística.

Rannells, que em 2009 foi o ingénuo mórmon Elder Price em The Book of Mormon, o musical de sucesso da dupla que criou South Park, e que interpreta Elijah, o ex-namorado gay de Leena Dunham, na série Girls, vai passar a calçar os saltos que até este domingo, 17 de Agosto, pertenceram a Neil Patrick Harris e demorará mais de uma hora a maquilhar-se até entrar em cena para pouco mais de 90 minutos de um falso café-concerto-rock. A peruca que lhe prenderão à cabeça será apenas a primeira de muitas, porque a personagem Hedwig “é uma coisa estragada”, diz a própria, repetidas vezes, ao longo do espectáculo.

Hedwig and the Angry Inch é uma fantasia desencantada inspirada em factos reais que se desfaz ao vivo através de uma banda sonora que capitaliza sobre a memória afectiva de uma América nostálgica pelas promessas de um mundo melhor, ensaiada nas lutas das décadas de 1970 e 1980. O glam-chic de David Bowie, Lou Reed, Iggy Pop, Tina Turner e John Lennon estruturam a vida de Hedwig, figura inspirada numa ama e prostituta de Berlim Leste que acreditava demasiado nos outros.

Hedwig, “essa coisa”, é, diz Rannells, “alguém que quer o que todos queremos: amar e ser amada. E ela cede muitíssimo em nome do amor. Ela queria algo melhor. Queria sair de Berlim Leste. Queria mais e o preço que pagou foi demasiado alto”, diz à revista Playbill, distribuída em todos os teatros.

O sorriso no rosto de Rannells na fotografia que aparece a acompanhar a entrevista é sublinhado pela entusiasmada frase “Oh yeah, I wanna do this”. “Estava aterrorizado, mas o que é extraordinário neste espectáculo é que, na melhor das hipóteses, o público apaixona-se por esta personagem”, dizia o actor, que já havia interpretado, em 2002, em Austin, no Texas, uma versão desta peça que John Cameron Mitchell escreveu e interpretou em 1998 (e pela qual viria a receber um prémio Obie, o equivalente ao Tony para o Off e Off-Off Broadway) e que, em 2001, se transformaria em filme também por si interpretado. 

A tragédia desta anti-heroína é a base de uma relação de confiança entre o actor e o público num espectáculo que insiste, tal como a sua protagonista, em sobreviver a si mesmo, sem nunca deixar de sublinhar uma dimensão trash e decadente. Só através do humor derrisório e das canções autofágicas se consegue entender “que a viagem que Hedwig conta, em traços largos, é bastante universal”, tal como sublinha Rannells.

Neil Patrick Harris foi uma Hedwig brilhante. Existem no YouTube excertos da sua interpretação da canção Sugar Daddy na cerimónia dos Tony e a mimética do actor é irrepreensível. Na verdade, o actor expõe, com a sua interpretação, o ritual de construção tácito de um mito, numa época em que o desejo voyeurístico  tornou a sordidez e o obsceno em algo glamouroso, usando a favor da sua interpretação um percurso que simula os sítios por onde Hedwig passou e, com ela, a sua miséria.

Os bares de motel, as espeluncas de beira de estrada, as discotecas bafientas, os festivais sem público e os quartos em prédios de renda baixa que Hedwig teve de frequentar são, ao mesmo tempo, esses lugares de autoficção e metáforas de uma representação crística até ao lugar do Calvário que será o palco onde assistimos à sua crucificação (e sim, no fim, ela ascende aos céus). No domingo, na sua conta de Instagram, o actor Neil Patrick Harris mostrava o processo de caracterização e, antes de entrar em palco pela última vez como Hedwig, atirava aos fãs, os seus e os da personagem, num falso sotaque alemão: “So, it’s been fun, Aufwiedersen darlings. I’ll see you in the next round.

A transformação do actor que cresceu connosco em Menino Doutor e nos habituámos a ver como o mulherengo Barney Stinson noutra série de televisão, Foi assim Que Aconteceu, revela não apenas a possibilidade de evasão pretendida pelo texto de Mitchell como explora as zonas obscuras que são comuns entre homens e mulheres. Não há nada de muito parecido e, à porta do Belasco Theatre, no final do espectáculo, quem esperava por ele agradecia-lhe a generosidade da entrega mas também a possibilidade de ser uma voz pública, de impacto transversal e com potencial de transformação, numa altura em que os transexuais se tornaram aquilo a que a revista Time, na edição de 9 de Junho, apelidava de “a última batalha norte-americana pelos direitos civis”.

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