Boom: um laboratório de cooperação ao ritmo do trance
Na Herdade da Granja estão até dia 11 cerca de 30 mil pessoas a dançar e a celebrar a cultura psicadélica nas pistas ou nas palestras. O Boom Festival é já um dos mais relevantes do mundo no segmento dos eventos que defendem modos de vida alternativos.
Cada um tem o seu próprio ritmo. É um festival de várias camadas. Na zona de acampamento uns espreguiçam-se. Na água da barragem dão-se os primeiros mergulhos. Nas suas margens, cruza-se quem acabou de se levantar e quem ainda não se deitou. Na pista principal, o chamado Dance Temple, as sonoridades electrónicas mais vertiginosas do trance psicadélico ouvem-se, perante uma multidão que grita sempre que uma empolgante espiral de som irrompe.
Numa outra pista, o Alchemy Circle, ouvem-se sonoridades electrónicas dançantes mais envolventes e na zona Chill-out uma massa de corpos deitados deixa-se levar pelos sons mais calmos.
Daí a pouco, num dos extremos do extenso recinto, na chamada Healing Area, iniciar-se-ão diversas actividades de grupo assistidas por especialistas, do ioga ao contacto-improvisação. Mas na areia da barragem, por iniciativa própria, também existe quem as pratique.
Às tantas, uma rapariga desce em corrida uma das encostas, tirando toda a roupa durante o percurso, para mergulhar nas águas. Nos diversos recantos, as espreguiçadeiras, os lugares para estar, os baloiços, as jangadas dispostas dentro de água ou as redes colocadas em árvores estão invariavelmente ocupadas. É cedo. Mas podia ser à tarde. Ou à noite. No Boom, cada um cria o seu próprio ideário. Tem o seu ritmo. São 24 horas sobre 24 horas para cada um vivenciar.
Une-os a cultura psicadélica. Mas na forma como a vivem há diferenças. Uns estão presentes pela música e dança. Outros pela partilha do conhecimento. Outros pela experiência, pela sociabilidade e pelas possibilidades lúdicas do espaço – seja a torre dos desejos, os jardins secretos, o museu ou as diversas esculturas.
E cada vez mais, existem os curiosos. Gente que não tem uma apetência especial pela música ou pela cultura que a envolve, mas que ouviu falar da experiência e quer perceber o que é exactamente. É o caso de Ricardo Samões, advogado de 34 anos, que durante anos ouviu falar do Boom através de amigos e resolveu vir ver como é.
“Ainda estou a tentar perceber”, diz-nos ele, ao segundo dia, “mas estou surpreendido porque é mais bem organizado e relaxado do que estava à espera. E esta coexistência entre pessoas tão exóticas, neste lugar, acaba por ser um corte com o quotidiano que funciona bem. Como dizem os meus amigos, por uns dias, pode-se ser feliz aqui.”
Essa é outra distinção relevante. Das 30 mil pessoas presentes este ano, 90% vem de fora, de França, Inglaterra, Alemanha ou da Austrália. Apenas 10% é de Portugal. Por norma, para quem vem de fora, a cultura psicadélica não constitui um corte com o quotidiano. Está integrado no seu dia-a-dia. É um estilo de vida, se quisermos. Como a francesa Jeanne Gopher, que está no evento pela terceira vez consecutiva. Vem porque gosta do espaço ou da música, mas também “da energia” e da “sensação de liberdade que se respira”.
Jeanne foi uma das muitas pessoas que encheu, na quarta-feira, ao final do dia, o espaço da Liminal Village, onde todos os dias decorrem palestras, apresentações, conversas interactivas ou debates. Em palco, uma respeitável senhora de cabelos brancos, Elisabet Sahtouris, americana, bióloga, pensadora e autora de várias obras, onde olha para as diversas disrupções do mundo actual a partir do seu conhecimento da natureza. Na sua alocução focou o binómio competição-cooperação, seja na natureza, entre pessoas, países ou impérios, para concluir que os sistemas sociais e económicos competitivos que nos regem se estão a auto-aniquilar e é necessária uma transição inteligente para novos sistemas de cooperação.
A certa altura, alguém perguntou quando é que essa mudança teria início. “Já está a acontecer, vocês são a prova disso”, respondeu, argumentando que é necessário conservar o que funciona no mundo actual e ser “radicalmente criativo” com o que não funciona, argumentando que essa é também a forma da natureza operar. “Um novo mundo já está a ser construído e vocês fazem parte dele”, disse.
Um dos mais relevantes do mundo
Nos últimos anos o Boom cresceu e isso é constatável de diversas formas. Pelo número de visitantes – a organização teve que declarar "lotação esgotada" há semanas, quando atingiu as 30 mil pessoas, porque existia o receio que muitas outras pudessem afluir ao local sem bilhete – mas também pelo posicionamento do evento. Continua a existir uma forte ligação espiritual ou mística com a realidade, e isso é perceptível na festa, na alegria, no imaginário e nas imagens que o festival projecta, mas há também cada vez mais vontade de intervenção transformadora através da partilha do conhecimento.
O próprio acontecimento é a projecção prática que através da cooperação é possível fazer acontecer, reinventando-se quase do zero, de dois em dois anos, desafiando massa criativa a renovar o espaço. “O festival não vive dos grandes nomes da música, é uma coisa mais conceptual. Nesse sentido são as próprias construções, feitas de raiz, que materializam a mensagem do mesmo, seja em relação à sustentabilidade, ou à vivência mais alternativa em relação à cultura dominante, não renegando conceitos que estão na ordem do dia, mas num formato diferente”, diz Artur Mendes, da organização.
O Boom ganhou nos últimos anos diversos prémios internacionais de sustentabilidade, posicionando-se hoje como um dos mais relevantes do mundo no segmento dos eventos que defendem modos de vida alternativos, misto de electrónicas, difusão de conhecimento e arte. Essa maior maturidade também se vislumbra na forma como hoje o festival é percepcionado em Portugal. Durante anos existia estigmatização decorrente do facto das músicas electrónicas de dança serem associadas ao consumo de substâncias adictivas. Hoje ainda existe preconceito, mas diluiu-se, “porque há uma abordagem mais adulta do festival enquanto fenómeno cultural” diz Artur Mendes.
Ou seja, não se trata de negar que existem indivíduos que consomem substâncias adictivas neste, e em tantos outros acontecimentos comunitários, mas sim de tentar compreender e enquadrar essa realidade. “Não vale a pena dizer que isso não acontece, o que vale a pena é tratarmos uns dos outros”, defende Artur Mendes. Nesse quadro, Portugal é para muitos países por esse mundo fora, um exemplo, com uma política humanista, em vez de apenas repressiva.
Foi nesse contexto que, por exemplo, foi convidado João Goulão (director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), afirma Artur Mendes, que “veio cá falar da questão da descriminalização perante uma plateia atenta do mundo inteiro.” E é também nesse âmbito integrador de diferentes posturas e realidades que tanto “contemplamos intervenções de estudiosos das ciências alternativas, como pessoas da Fundação Champalimaud.”
Já se percebeu. O Boom está muito além da música, do entretenimento, do ritual festivo. Mas ao longo do dia e da noite é a presença da música que marca. Pela extensão do espaço, pode-se encontrar com facilidade zonas de isolamento, onde quase não se sente. Mas ela é omnipresente. Na tenda principal o trance psicadélico faz levantar os pés de todos. Eles, em tronco nu, e elas, com motivos garridos, dançam como se não existisse amanhã.
No espaço Sacred Fire as surpresas acontecem. Pode ser com música africana para dançar ao jantar, como aconteceu na terça-feira com os Celeste Mariposa, ou com o calor hipnótico do house e tecno de SwitchSt(d)ance e com o ambientalismo dos Tjak, na quarta-feira.
E de madrugada, quando o sol nasce, quem estava saturado de trance, pôde desfrutar de Afonso Macedo na tenda Alchemy Circle, propondo música house, mesmo antes do pequeno almoço de uns e do primeiro mergulho de outros. Depende do roteiro de cada um.
No Boom não se nega a competição entre palcos, entre pessoas, entre países ou entre diferentes formas de olhar o mundo, mas acima de tudo acredita-se na cooperação. Com música de dança em fundo.