Esplendor e miséria do “molt honorable” Jordi Pujol

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A damnatio memoriae é a condenação ao esquecimento. No caso dos romanos consistia em anular as honras de um homem, riscar o seu nome dos monumentos e derrubar as suas estátuas. Que acontecerá às muitas instituições, públicas e privadas, que ostentam o nome Pujol? Será possível apagar 44 anos da autonomia ou, como nas fotografias soviéticas, rasurar na História o nome Pujol?

Figura tutelar

Pujol não é Berlusconi nem um qualquer outro político corrupto, como há por toda a Espanha. Era o “pai da pátria”, a referência do nacionalismo catalão. Governou Barcelona durante 23 anos (1980-2003). Desempenhou um papel central na Transição para a democracia e modelou a autonomia catalã. Contribuiu para a estabilidade institucional espanhola ao dar apoio parlamentar ao último governo de Felipe González e ao primeiro de José-Maria Aznar.

Quantos políticos de direita terão experimentado os cárceres do franquismo ou a tortura? Um só, lembra o jornalista Enric Company: Jordi Pujol. Preso em 1960, por uma acção de protesto contra Franco, passou dois anos na cadeia. Médico competente, opta pela política em 1971.

Tinha um imenso capital político e, já fora do poder, continuou a ser o homem mais influente de Barcelona. “Era um símbolo da democracia, da liberdade e da autonomia da Catalunha”, diz o politólogo catalão Lluís Orriols. Foi um político pragmático. Autonomista nos anos 80, converteu-se ao independentismo em 2011 e passou a ser a sua figura tutelar.

“A queda do mito inverte o sentido de todos os valores e conceitos do seu projecto pessoal e político”, escreve Lluís Bassets, director-adjunto do El País. “A biografia de Pujol, desde a mais tenra juventude, é a de alguém obsessivamente dedicado ao catalanismo, com uma persistente e irresistível ambição de poder ao serviço da Catalunha. (...) Agora é um ícone partido e manchado pelos mais lacerantes defeitos que se podem atribuir a um político: a corrupção e a mentira.”

Para os independentistas, tanto os da Esquerda Republicana Catalã (ERC) como os do seu próprio partido, Convergência Democrática da Catalunha (CDC), passou a ser uma companhia “tóxica”. Explica Bassets: “A identificação do pujolismo com a corrupção pode inibir e chocar amplos sectores sociais que se viram suavemente arrastados do autonomismo para o independentismo, entre outras coisas graças à viragem ideológica de Pujol, da sua família e do partido que está por trás deles. Basta imaginar o efeito de slogans como ‘A Espanha rouba-nos’ depois das revelações da semana passada.”

“O caso destrói parte do argumento de que uma Catalunha independente seria muito distinta da Espanha e menos corrupta”, acrescenta Orriols.

Poder e corrupção

O escândalo Pujol não foi surpresa. Alguns dos filhos são suspeitos de uma cascata de delitos — tráfico de influências, corrupção, fuga ao fisco, branqueamento de capitais. Estão desde 2012 sob investigação. Empresários cúmplices e ex-mulheres zangadas começaram a falar — há histórias de malas cheias de notas de 500 euros a passarem para Andorra. Já não são apenas os filhos que estão em causa: é todo o clã Pujol.

Os filhos regularizaram à pressa, servindo-se de uma amnistia, parte da fortuna escondida em Andorra. O que surpreendeu foi a confissão de Pujol, o facto de ao fim de décadas perder a “imunidade”. A Audiência Anticorrupção pediu já todos os movimentos de contas na Suíça e Andorra em nome dos Pujol.

Em 1984, o ano da sua primeira maioria absoluta, o El País, edição de Barcelona, anunciou que estaria iminente uma investigação judicial “contra Pujol e outros responsáveis da Banca Catalana”. Como respondeu? Convocou uma manifestação nacionalista e declarou da varanda da Generalitat: “Este ataque não é contra mim, é uma jogada indigna contra a Catalunha. (...) De ética e moral somos nós quem pode falar, não eles.”

“Pujol tornou-se a Catalunha” e esta passou “de uma democracia a um regime”, observa o constitucionalista catalão Francesc Carreras. “Pujol envolveu-se na Senyera [bandeira catalã] e qualquer crítica à sua pessoa passou a converter-se num ataque à nação.” Os escândalos? “Pura hipocrisia, não houve surpresa nenhuma. As pessoas murmuravam em privado mas calavam-se em público por temor de represálias.”

“Há um défice democrático na Catalunha”, afirma o filósofo Manuel Cruz, da Universidade de Barcelona. Pujol impôs uma espécie de omertà na imprensa — multiplicam-se agora os depoimentos de antigos directores — e de ameaça de ostracismo social e económico dos que são declarados “anticatalães”, fenómeno que se alargou drasticamente nos últimos anos. Em volta do clã Pujol, desenvolveu-se uma rede clientelar. O mero nome Pujol tanto abria portas como servia para intimidar.

“Despujolizar”

Na sua confissão, Pujol reconhece o dinheiro na Suíça — uma herança do pai, que fez fortuna na era franquista com o tráfico de divisas. “Lamentavelmente nunca se encontrou um momento adequado para regularizar esta herança.” Até aí, Pujol negara sempre a existência de contas no estrangeiro. Uma ex-namorada do filho mais velho, Jordi, ri-se da herança e afirma tratar-se de “comissões sobre obras públicas”. Outro dos filhos, Oriol, secretário-geral da CDC e destinado a suceder ao pai na liderança da Catalunha, demitiu-se do cargo por estar a ser investigado por suspeita de corrupção.

Hoje, em Barcelona, dos independentistas aos anti-independentistas, fala-se muito na necessidade de “despujolizar” o país e numa “refundação”. Mas esta não pode ser a da damnatio memoriae. A questão catalã já não é a de um homem — Dr Jekyll and Mr Hyde — nem de um clã. Esquecer seria vão e doentio. Há um antes e um depois da “queda da casa Pujol”, um terramoto que deixa um sentimento de “ruína moral”. O depois traz a oportunidade de uma reflexão da sociedade catalã sobre si mesma, o nacionalismo e os amanhãs que se preparam. E mais não sabemos.

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