Mitos e realidades
A forma como decorreu a escolha do nome que Portugal mandará para a Comissão de Bruxelas andou à volta de alguns mitos, muito cultivados em Lisboa, mas muito longe do que se passa realmente na Europa. Vale a pena explicar o que valem, até porque a narrativa posta a circular pelo gabinete do primeiro-ministro também se apoia neles.
O mito “número um”, aliás, partilhado por muito boa gente, é a sempre invocada “amizade” de Jean-Claude Juncker, o novo presidente da Comissão, por Portugal. Não se contesta que Juncker goste de nós. Vive num país onde uma percentagem grande da população é portuguesa. Esteve no poder durante quase 20 anos e deve ter apreciado bastante os votos dos portugueses. Tem bons amigos em Portugal. Saltar daí para acreditar que o Governo português conseguiria um tratamento especial é pura ilusão. O antigo primeiro-ministro do Luxemburgo tem “amigos” em todas as outras capitais da União, o que quer dizer que tem de respeitar, mais ou menos, os tradicionais equilíbrios que a Comissão é suposta preservar – entre novos e velhos países, famílias políticas, “grandes” e “pequenos”, ricos e pobres – e que cada um terá o cuidado de lhe recordar. E tem, além disso, “grandes amigos” nas capitais dos grandes países, numa altura em que a crise deslocou boa parte do poder de decisão para Berlim. Esta é a dura realidade.
Por que razão Jean-Claude Juncker, quando ainda não definiu a nova orgânica que quer para a Comissão, nem negociou compromissos com ninguém, havia de garantir a Portugal a pasta dos Fundos Europeus? O que levou Passos Coelho a insistir num acordo praticamente impossível? A reacção do primeiro-ministro ao decidir-se por Carlos Moedas, como se fosse uma espécie de castigo, mesmo que compreensível em termos internos, não deve ter agradado nada ao futuro presidente da Comissão.
O segundo mito assenta na ideia de que o país já recuperou o seu bom nome europeu. Cumpriu diligentemente o programa da troika, fez o que lhe mandaram e ganhou credibilidade. Tudo isto é verdade, mas não chega. Basta ler os relatórios de algumas instâncias internacionais e europeias para vermos espelhadas neles as enormes fragilidades que pesam ainda sobre Portugal, desde a sustentabilidade da recuperação económica ao equilíbrio das contas externas, passando por uma dívida pública cada vez mais pesada. Faltava apenas o sismo provocado pelo Grupo Espírito Santo, cujas ondas de choque ainda não terminaram, para termos a fotografia completa. Bem-comportados só mesmo aos olhos de Berlim, cujas políticas o Governo não contesta, porque pensa da mesma maneira. Maris Luís Albuquerque não era a primeira escolha de Passos. Foi “soprada” de Berlim ao gabinete de Juncker. Passos não teve outra alternativa senão agarrar na “deixa”, até porque outras possibilidades foram perdendo força.
Aliás, a ilusão sobre o nosso peso europeu levou mesmo a que a candidatura de Maria Luís Albuquerque à presidência do Eurogrupo fosse considerada. A escolha não afectaria o seu lugar de ministra, até porque o mandato do actual presidente, o holandês Jeroen Dijsselbloem, termina apenas em Maio do próximo ano. Outro mito a precisar de um pouco de realidade. Se houve uma escolha mais ou menos consensual no Conselho Europeu de 16 de Julho, foi sobre o nome do actual ministro das Finanças de Madrid, Luis de Guindos. Acresce que os líderes ainda não decidiram se o presidente do Eurogrupo será, como agora, um ministro em funções ou um cargo autónomo. Mas a candidatura de Dijsselbloem a comissário (ainda falta a confirmação oficial) viria apertar os calendários.
Finalmente, o mito dos consensos. José António Seguro foi convidado a ir a São Bento para falar com o primeiro-ministro sobre esta escolha. Entrou mudo e saiu calado. A única coisa que disse, antes desse encontro, foi que o partido que ganhou as eleições europeias devia escolher o comissário. Já deixou cair a ideia, cuja lógica levaria, em teoria, a dar a Marine Le Pen a possibilidade de designar o comissário francês. É legítimo perguntar o que ganhou Seguro com isso. Pode ter levado o nome de Maria João Rodrigues com o seu valioso currículo europeu. Passos nunca o considerou. Carlos Moedas tem imensas qualidades técnicas, mas não tem peso político e só por milagre obterá uma pasta relevante. Pior para o Governo só o risco de uma Comissão com comissários de primeira e de segunda. Vamos ver.