Paraty, a festa em que os escritores "acontecem"

Cidade grande na época do ouro e da escravatura, refúgio de artistas, intelectuais e opositores no tempo da ditadura, esquecida pelo resto do Brasil durante décadas, Paraty renasceu há 12 anos com uma festa literária. Os maiores escritores do mundo bebem cachaça e percorrem as ruas de pedras irregulares ao lado dos seus leitores. Fomos perceber como é que uma cidade — que continua a ter profundos problemas sociais — se reinventa. E como é que a festa de escritores que na próxima quarta-feira recomeça se relaciona com uma população herdeira de escravos e pescadores.

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A água invade regularmente as ruas empedradas do centro histórico de Paraty DUDA OLIVEIRA
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Os turistas desconhecem a outra Paraty que fica fora do centro, com os seus problemas graves DUDA OLIVEIRA
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Duas vezes por semana, Clélia Botelho lê para as crianças internadas no hospital municipal DUDA OLIVEIRA
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Ovídio Poli Junior fundou uma editora em Paraty: a OffFlip DUDA OLIVEIRA
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O músico Luís Perequê teme que Paraty se torne hiperdependente do turismo DUDA OLIVEIRA

Na verdade, Flávio até já tinha mostrado os textos — com algumas atrapalhações pelo meio, é certo. Depois de ter começado a sua relação com os livros “de forma criminosa” — “Roubava-os da banca de um amigo meu, e um dia a directora da escola foi-me buscar debaixo da cama por eu ter roubado 16 livros” —, lançou-se na escrita.
O único sítio onde poderia publicar era o jornal local de Paraty e, por isso, quando alguém lhe indicou o edifício, começou a deixar envelopes com textos debaixo do portão. “Esperei uma semana para ver o meu texto impresso, mas não saiu. Peguei em mais textos e voltei a enfiar por baixo da porta, esperei a semana seguinte e não saiu. O que está acontecendo? Peguei em mais um e, quando ia enfiar debaixo da porta, uma velhinha com mais de 15 cachorros e gatos abriu e falou: ‘Meu amor, é você que está deixando estes textos aqui?’”.

Quando finalmente acertou com a porta do jornal, Flávio começou a ver os seus poemas publicados. Mas faltava-lhe o livro. E era nisso que pensava nesse ano, enquanto decorria a FLIP e ele tentava não atropelar escritores. Foi então que conheceu Ovídio Poli Junior. Mostrou-lhe os poemas — “Com muita reserva, ele puxando de um lado, eu segurando do outro” — e Ovídio disse-lhe ‘o livro está aqui, cara!’”.

Flávio de Araújo e Ovídio Poli Junior chegam de manhã cedo à Pousada do Ouro, na zona histórica de Paraty, para contar como, desde esse encontro em 2006, muita coisa mudou para ambos. Hoje, Flávio tem um livro publicado (Zangareio), Ovídio tem uma editora, a OffFlip (e também o seu próprio livro editado, O Caso do Cavalo Probo) e os dois organizam a programação literária da OffFlip, um evento paralelo à FLIP, com música, teatro, cinema, e que, só nas actividades ligadas à literatura, leva à cidade mais de 100 autores por ano. E tem até um prémio.

Se a FLIP tem, como pretende, um impacto duradouro em Paraty, são histórias como a de Flávio que melhor o revelam. Foi para isso que viemos até à cidade quase dois meses antes do início da festa – para perceber como nasceu a FLIP e como é que ela se envolve com Paraty antes e depois de, no final de Julho, a onda de escritores de todo o mundo invadir as ruas empedradas e encher as pousadas e as praças.

O primeiro ano foi 2003. “Tinha tudo para dar errado, ou pelo menos muita coisa”, resume o escritor Zuenir Ventura no livro Paraty é uma festa: dez anos de FLIP. A ideia inicial partiu da editora inglesa Liz Calder, que nos anos 90 se tinha apaixonado por Paraty, construindo aí uma casa, e sonhando criar um festival literário à semelhança do que existe em Hay-on-Wye, no País de Gales. Teve como cúmplices o brasileiro Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e o arquitecto Mauro Munhoz, que, além de ter projectado a casa dela em Paraty, tomou a seu cargo a organização da festa. E, apesar de “ter tudo para dar errado”, a primeira FLIP aconteceu, e levou até Paraty nomes como Millôr Fernandes, Luís Fernando Veríssimo, Luiz Ruffato, Ferreira Gullar, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Caetano Veloso, ou Chico Buarque. 
E ainda aquele que foi uma das grandes estrelas da edição, o historiador britânico Eric Hobsbawm, que no livro de comemoração dos dez anos da festa aparece numa fotografia a comprar doces rodeado de frascos coloridos de rebuçados e chupa-chupas.

A primeira festa tornou-se mítica, recorda Zuenir Ventura no seu texto. “‘Como ela, nunca mais’, passou-se a dizer. Tempos depois, o escritor Sérgio Rodrigues fez a crónica nostálgica de um ausente. ‘Eric Hobsbawm foi visto correndo atrás de borboletas utópicas, bois passavam voando, e a água benta das igrejas era puro Paraty. De tanto ouvir os relatos de quem esteve lá – pessoas saudosas que talvez exagerem um pouco –, eu acredito que era exactamente assim’.”

Antes e depois da estrada
Há, de facto, alguma coisa de mágico em Paraty. Sempre houve, desde o tempo “antes da chegada da estrada” – a rodovia Rio-Santos chegou no início dos anos 70 –, em que, depois da queda do comércio do ouro e dos escravos, esta era uma cidade esquecida do mundo, refúgio paradisíaco de intelectuais, artistas, e opositores políticos da ditadura.

Filho de uma família de Minas Gerais que migrou para aqui no final da década de 50, o músico Luís Perequê nasceu nessa Paraty, que “era quase uma ilha, onde você chegava de barco vindo de Angra dos Reis ou pelas trilhas vindo do estado de São Paulo”. Muitos migrantes, como a família de Perequê, vieram nessa altura para ocupar as terras das fazendas que tinham sido abandonadas no final do período da escravatura. “Todo o mundo foi embora, e as fazendas ficaram caindo aos pedaços”, conta o músico. “Nesse lugar onde nasci, me lembro das ruínas de uma fazenda e eu, criança, brincava nelas." Os novos habitantes procuraram formas de sobreviver. “O meu pai trouxe de Minas os hábitos de tropeiro. Quando chega aqui, o que vê como oportunidade de negócio é ainda o transporte, e então tinha uma tropa que fazia o transporte pelas trilhas, levava cachaça de Paraty para Ubatuba, uma semana, 15 dias, viajando, e voltava trazendo peixe seco que as comunidades produziam mas não tinham onde vender."

Com a construção da Rio-Santos, tudo mudou. “Começa a era turística, que põe a gente de volta no cenário brasileiro”, diz Perequê. Os antigos proprietários que tinham abandonado as terras viram-nas valorizar-se e quiseram recuperá-las, houve gente expulsa e nasceram então problemas sociais como os que ainda hoje se vêem num bairro como a Ilha das Cobras – não por acaso o escolhido pela Associação Casa Azul, organizadora da FLIP, para se instalar, com a sua biblioteca e o seu centro, base de onde parte um trabalho mais profundo com as comunidades locais.

Já iremos conhecer a Casa Azul, e a Belita, que a dirige, mas primeiro é preciso conhecer um pouco mais da história de como Paraty chegou até aqui. E Luís Perequê conta-a melhor do que ninguém. Para além dos migrantes mais antigos, expulsos para bairros periféricos da cidade, há também “os milhares de homens de tudo quanto é canto do país” que, terminada a construção da auto-estrada, ficam por aqui e criam outros bairros, como o da Mangueira. Estas realidades juntam-se com os tais artistas e fugitivos do regime militar. “Em plena ditadura, aqui tem uma vida cultural, os cineastas, os poetas, o movimento hippie estava no auge, e havia muita música, muita festa nas praças. Isso foi a minha adolescência.”

Na altura em que o Ipsílon passou por Paraty, uma exposição na Casa da Cultura mostrava bem o que foi esse momento único. Esta é a vida que eu quis, da fotógrafa Nair Benedicto, reúne uma série de retratos de figuras da Paraty dos anos 70, numa espécie de último registo de um mundo em desaparecimento. Aí conhecemos desde a Tia Geralda, “descendente dos Alvarenga e Corrêa, fabricantes de cachaça, [que] recebia em sua casa todos os que a procuravam”, ao Gabriel Arcanjo, cabelo aos caracóis, chapéu de cowboy, mala de cabedal, “o James Dean rebelde de Paraty”, passando por Diuner Mello, “conhecido pelas suas túnicas indianas e bolsa a tiracolo”, por Nair Fernandes, vestida de noiva, “eterna virgem, candidata a um casório”, ou por Júlio Paraty, “pintor primitivo”, fotografado nu, semi-escondido pela folhagem.

Começava então a haver algum turismo, mas ainda tímido. Só que, de tímido, este passa a agressivo, e a cidade adapta-se a ele – demasiado, segundo Perequê. “Começou a fazer-se tudo para trazer os turistas, para nos tornarmos um lugar visitado." E isto preocupa-o. “O turismo pode ser a indústria do nada, as pessoas páram de fazer as coisas porque o lugar vira turístico. Paraty é hoje uma cidade que não produz nada, quando antes era uma produtora de farinha, de cana, de banana. Não houve uma política de valorização do fazer, ninguém disse ‘se você faz doce de banana, continua a fazer, porque o turista vai querer ver o seu doce de banana, não vai vir só para você o levar para onde antes existia um bananal’."

Vontade de fazer coisas
Passa (também) por ideias como esta uma reflexão mais profunda sobre para onde vai Paraty. Reflexão que é feita (também) durante a FLIP porque, tal como Luís Perequê, Mauro Munhoz, o director da festa, preocupa-se com a relação entre esta e o território. “Frequento Paraty desde os anos 70”, conta. “Era um lugar de difícil acesso, e marcou em mim essa impressão de cidade perdida no tempo. Como ficou isolada 130 anos, desde a década de 50 do século XIX até aos anos 70 do século XX, ficou muito preservada, mantendo saberes e fazeres. E mantendo-se distante do que estava acontecendo, principalmente na época da ditadura, criou uma circunstância muito especial de resistência, de lugar de liberdade e de ligação entre diferentes, com os locais e as pessoas de fora misturados.” O artista Júlio Paraty é um exemplo disso. “A Djanira [da Motta e Silva] é uma das pintoras importantes do movimento modernista, da Semana da Arte Moderna, de 1922, em São Paulo. O irmão tinha problemas sérios com a ditadura e ela tem depoimentos dizendo como era importante essa casinha que tinha em Paraty, como era um espaço vital para sair daquela situação de pressão. O Júlio Paraty, filho de um artesão local que um dia foi fazer uma obra a casa da Djanira, aprendeu a pintar com ela nos anos 60.”

Mais tarde, já nos anos 90, a ligação de Mauro com a cidade tornou-se mais profissional. “Fui chamado, enquanto arquitecto, para fazer um projecto, mas surgiram dificuldades e ele não avançou." Tinham ficado, no entanto, os contactos com os responsáveis locais e a vontade de fazer algo. A ideia de que nem tudo tinha que depender do Estado e de que a sociedade podia organizar-se e assumir algumas responsabilidades começou a crescer nesses anos de muitos debates e alguns confrontos.

Mauro foi compreendendo melhor os problemas dessa cidade da qual os turistas só conhecem o centro histórico, as casas de portas coloridas, as pousadas de pacatos jardins interiores, a água que regularmente invade as ruas empedradas numa convivência antiga, e pacífica, com os moradores, como se estivéssemos numa Veneza deslocada no espaço. Mas quando se sai desse centro histórico encontra-se outra cidade, feita de bairros como a Ilha das Cobras, que ficam para lá da zona à qual o arquitecto chama “o nosso Muro de Berlim”, e a que outros chamam pomposamente “o aeroporto”. Trata-se, na verdade, de um campo aberto para os aviões privados poderem pousar. Essa faixa de terreno divide Paraty ao meio, e mantém o centro histórico longe dos problemas de droga e violência – recentemente houve registo de seis assassinatos numa única semana.

Não pensar a cidade com todos os seus problemas e contradições era algo que não fazia sentido para Mauro. “Era preciso pensar de uma maneira inteligente essa evolução do território em constante mutação." Paraty estava a tornar-se uma cidade de veraneio, e essas são geralmente “cidades que durante umas décadas se sustentam e depois acabam naufragando numa espécie de entropia económica”. Além disso, “Paraty vivia um problema de sazonalidade muito grande: só entrava dinheiro no Verão, e a certa altura a gente percebeu que não adiantava mais falar de teoria, era preciso que alguma coisa mudasse”. Perceberam que era a cultura que fazia falta "nesse contínuo processo de transformação do território”. A festa literária nasceu aí.

Isabel Costa Cermelli, mais conhecida como Belita, esteve lá desde o início. Na época em que tudo começou, era casada com Mauro, e desde esse ano inaugural de 2003 tornou-se a directora executiva da Casa Azul, a associação criada para organizar a FLIP, mas sempre em ligação com a cidade. É na sede da Casa Azul, desde o final de 2012 na Ilha das Cobras, que a vamos encontrar.

É mesmo uma casa pintada de azul, e de várias outras cores, com uma biblioteca cheia de livros, sobretudo dos autores que já passaram pela FLIP e, no dia em que o Ipsílon por lá passou, com algumas crianças do bairro a brincar. “Quando pensámos o festival literário foi já com uma estratégia – tinha de ser algo que a população entendesse”, recorda Belita. A primeira edição foi o tal furacão, em que tudo foi muito maior do que inicialmente se tinha imaginado. “A gente fala que foi um bebé que nasceu de barba e bigode”, diz, sorrindo. Esse sucesso inicial obrigou a que os outros projectos ficassem “estacionados” por alguns anos. A primeira biblioteca foi montada em 2005, mas desde a edição inicial começou o trabalho de envolvimento das escolas e dos professores. Hoje, essa é uma das principais apostas da FLIP.

Belita tem em cima da mesa o Manual Flipinha 2014, feito para apresentar os autores que vêm à festa, explicar os livros de cada um e ajudar os professores a trabalhá-los da melhor forma com as crianças. Para que tudo culmine na Flipinha, altura em que os alunos saem também para as ruas de Paraty, pondo em prática o que aprenderam e, em muitos casos, tendo a oportunidade de conhecer pessoalmente os escritores que andaram a descobrir nos meses anteriores. 
“Queríamos usar este programa educativo, que se transformou na Flipinha, numa ferramenta de mobilização para a comunidade paraense se relacionar com a FLIP. Já passaram aqui cerca de 700 professores para trabalhar os autores que virão este ano”, explica, sentada no pátio exterior no cimo da Casa Azul. “Quando aconteceu a primeira FLIP havia três bibliotecas públicas em Paraty; hoje há 30, entre bibliotecas escolares e comunitárias. A gente trouxe quase 30 mil livros para a cidade.” E que impacto tem tudo isto na população? “O livro virou algo que para o paraense hoje é familiar, querido. Até as lojas de brinquedos começam a ter livros." E há uma geração que cresceu com a FLIP – crianças que participaram na Flipinha e que hoje, já jovens, fazem parte da Flipzona, mais ligada ao trabalho com as redes sociais, o audiovisual, a produção cultural, incluindo a cobertura mediática da FLIP. 

Belita acredita que há uma influência real. “Aqui no bairro há problemas de tráfico, de prostituição. Mas os meninos que frequentam a biblioteca, não há nem chance de irem por aí.” Para além da leitura, há oficinas que as crianças podem frequentar quando não têm aulas, com temas como filosofia, música, artes, criação. E também, para os mais velhos, preparação para o exame nacional do ensino médio. A mudança da Casa Azul da zona do centro histórico para a Ilha das Cobras foi muito importante. “Quando viemos para cá, pensámos ‘como vamos ganhar a confiança das pessoas?’”, conta Belita. “A gente ficou bem atenta. Passamos na rua com um sorriso, perguntamos ‘já foi lá conhecer a biblioteca? Leva lá os seus filhos’.”

Numa mesa junto às estantes de livros está Clélia Botelho, lendo com um menino. Tal como Flávio Araújo, o motoboy-escritor, Clélia viu a sua vida mudar por causa da FLIP. Fazia limpeza na Casa Azul e às vezes ficava a espreitar um livro ou outro. Quando lhe perguntaram se gostava de ler, respondeu: “Pôxa, sou apaixonada por livro." Perguntavam-lhe então porque não tirava um curso. “E eu dizia ‘passei da idade’." Mas a actual patroa na casa onde trabalha insistiu: “O que é que você quer da vida? Quer ser sempre faxineira?”.

E foi assim que Clélia – que tinha estudado patologia clínica e que decidira trabalhar a dias por não aguentar a vida no hospital, onde se ligava demasiado aos doentes e sofria demasiado – decidiu, já com os filhos criados, voltar a estudar. Com a ajuda do curso da Casa Azul, conseguiu entrar na Faculdade de Pedagogia e, melhor do que tudo, todas as terças e sextas vai ao hospital municipal para visitar as crianças que estão internadas e ler para elas.

“Da primeira vez que chego e falo de livros ninguém quer ler, aí eu começo a brincar, a perguntar onde é que a criança mora, e vou abrindo um espaço. Sou a tia da biblioteca, a tia da leitura, quer que eu leia? E eles falam que não. Mas tenho sempre um truque na manga, levo aqueles livros-brinquedo, que têm paisagens, abro e elas já se interessam. Aí, se eu levo 30 livros, elas querem os 30, e às vezes passa da hora”, conta Clélia. Fala numa voz doce, suave, e quase se comove quando lembra o dia em que tinha outro compromisso e não podia ir ao hospital, mas havia um menino que não lhe saía da cabeça e, mesmo fora de hora, acabou por ir. “Quando cheguei na esquina, ele estava debruçado da janela, esperando, e falou ‘Tia! Você veio!’. Não tem nada que pague isso." Por isso ela vai sempre, segura a mão do menino que tem medo de levar soro (“ele, apertando a minha mão, nem lembrou de gritar”), visita a menina que foi operada, substitui a mãe quando esta sai do quarto para chorar. E à noite, de volta a casa, estuda para terminar o seu curso e, talvez, depois, seguir para a pós-graduação.

Beber a água toda
A FLIP está mais uma vez a chegar, e muito do trabalho que se faz durante o ano vai culminar em mais uma festa, que, durante alguns dias, transforma Paraty. Mas o sucesso da FLIP não significa – antes pelo contrário – que os seus organizadores não continuem a pensar a cidade. Foi precisamente numa das mesas redondas da festa, na edição de 2008, que o músico Luís Perequê lançou uma ideia provocadora: e se se instituísse um período de defeso cultural?

Ele explica: “Com a festa literária, você resolveu com uma classe incrível o problema da baixa temporada. Mas aí entra a ganância e a cidade começa a querer mais, mais, mais. Todos os outros eventos nasceram depois. Até um festival de rodeo se tentou fazer aqui, imagina, numa cidade que só mexe com peixe. A gente descobriu a nascente e ninguém falou que era preciso fazer fila para tomar a água, e que se saltasse todo o mundo dentro da nascente a água ia ficar suja e mais ninguém ia poder beber. Foi isso que nós fizemos. Pulámos dentro da fonte para beber toda a água.”
A proposta do defeso cultural é inspirada no defeso, o período de pausa que os pescadores respeitam para dar tempo a que o peixe se reproduza novamente e evitar a extinção. “Toda a gente gostou muito da ideia. Sabe qual é a maior dificuldade de Paraty hoje? É arranjar um fim-de-semana livre para você fazer um evento. O capital tem pressa e a cultura tem o seu tempo, e não se encontram de jeito nenhum."

O que Perequê argumenta é que se uma cidade não tiver tempo para viver as suas próprias tradições culturais, ela irá transformar-se apenas num bilhete-postal, um cenário para os eventos que vêm, ficam um fim-de-semana, desmontam a tenda e vão embora. “E não venham dar oficinas em troca, é um engano de contrapartida. É o mesmo que você dizer ‘vou fazer um evento na sua casa e lá no final vou fazer uma oficina de lavar a louça’. É isso que os outros eventos fazem. O que eu digo é ‘se envolva com a vida da cidade, não chegue na véspera, me contrata e vai embora’.”

A FLIP encontrou um modelo. É, explica Ovídio Poli Junior, o editor, uma festa mais centrada nos escritores do que nos livros. “Eles mudaram o foco da literatura e do livro para o autor. Tem muita gente que critica essa coisa do espectáculo, mas transformar a literatura em espectáculo num país onde a maioria da população não lê é muito importante. E o mais importante é o potencial que a FLIP gerou no Brasil; ao longo dos anos eu vi várias festas serem pensadas aqui em Paraty." “Há de facto um culto da personalidade”, concorda Flávio de Araújo. “Quando o escritor é uma figura pública, isso é inevitável, mas, se chama a atenção para a literatura, é bom”. No caso dos escritores (e também arquitectos) portugueses que ao longo dos anos têm passado pela FLIP, “a conexão com o público é extremamente forte”, conta Mauro Munhoz. “Foram sempre momentos extremamente ricos e de muita envolvência com o público”, de Lobo Antunes a Valter Hugo Mãe, passando pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura, que, no ano passado, “gerou uma enorme empatia”.

O jornalista cultural Paulo Werneck, curador da edição deste ano da FLIP (os curadores mudam todos os dois anos), explica a sua perspectiva: “Ninguém está exigindo que sejam entertainers, que façam comédia stand-up. Mas é um palco, tem a ver com performance, e isso não é motivo de vergonha. Existe uma curiosidade dos leitores por conhecerem os escritores, a presença física é em si, em muitos casos, uma coisa deslumbrante.” Mas, reconhece, nem todos têm esse feitio. “O [J.M.] Coetzee apenas leu um conto e dirigiu duas palavras ao público fora dessa leitura, que foram ‘boa noite’. Mas a presença dele basta. A gente convida os escritores para que eles aconteçam, para que cheguem aos leitores deles. Os que são reclusos são reclusos. Eu adoraria que o Herberto Helder viesse à FLIP, mas sei que não virá, como acontece com vários outros, que recusam a dimensão performática da literatura.”

Este ano, tal como já foi em parte o ano passado, a festa será marcada por uma certa convulsão política que tem agitado o Brasil. Werneck, que não quer fazer uma “curadoria personalista”, pretende contudo reforçar o lado do debate de ideias, através de discussões ligadas a problemas do quotidiano, da privacidade na Internet à comida ética e saudável, passando pelo amor e pela paixão. “O Brasil vive um momento de muita politização, mas não trazemos para aqui uma política partidária, e sim uma política do século XXI. Seria impossível fazer a FLIP sem política, não seria uma festa digna do nome de festa literária."

Para o escritor Flávio de Araújo, a FLIP foi um mundo que se abriu para um rapaz nascido numa comunidade local de pescadores e ligado à cultura caiçara, que caracteriza estas comunidades. Hoje, acredita que por tudo isto as novas gerações podem vir a ter outra relação com a leitura, mas acha também que “há uma cobrança muito grande sobre a FLIP para a criação de leitores”, quando essa cobrança “deve ser requerida é às políticas públicas para a leitura”. O mesmo diz Ovídio: “A FLIP é uma ONG. O grande problema é que não existe uma política pública para a cultura na cidade, existe uma política de eventos, patrocinados pelo Estado e que são na sua maioria para os turistas.”

Mauro Munhoz diz também que a Casa Azul “está fazendo a sua parte”, mas isso não dispensa a necessidade de políticas públicas. “Você imagina o que é para cada criança de Paraty que passa pelos programas de incentivo à leitura ver o Amos Oz ir à Flipinha falar sobre literatura? Imagina o potencial transformador disso? Paraty é hoje uma cidade diferente por ter tido essa experiência.”

Por isso, se passar por Paraty entre a próxima quarta-feira, dia 30, e 3 de Agosto, espreite nas tendas à beira da água para ver os escritores a falar, veja se algum deles sai a correr atrás de borboletas utópicas, se passam bois a voar e se a água benta das igrejas se transforma em cachaça. Mas, sobretudo, tenha cuidado ao atravessar as ruas de grandes pedras irregulares. Olhe sempre para os dois lados, não vá dar-se o caso de ser atropelado por algum rapaz carregado de pizzas, de cabeça no ar, sonhando um dia ser escritor.

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