Questionar o poder e as suas novas formas no século XXI
A 12ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty começa na próxima quarta-feira e decorre até domingo. Paulo Werneck, o curador desta edição, explica o que vai acontecer durante os próximos dias no evento que vai homenagear Millôr Fernandes.
Nesta 12.ª edição participam muitos dos amigos de Millôr, incluindo o “quase mítico” cartoonista Jaguar (que fundou o semanário O Pasquim). Vai ser entrevistado por Reinaldo e Hubert, que trabalharam no famoso semanário, já como discípulos. “O crítico de arte Agnaldo Farias deu prova de coragem com a conferência de abertura, que promete ser histórica. Claudius, Sérgio Augusto e o cartoonista Loredano vão falar da obra. Haverá vídeos de leitura de textos do Millôr, uma exposição biográfica que contará inclusive com um jornalzinho diário, o Daily Míllor, com colaboração de Luis Fernando Verissimo, Antonio Prata, Chico Caruso, Claudius e Ivan Fernandes, o filho do homenageado”, acrescenta Werneck.
Num ano de eleições presidenciais, “num momento de muita fermentação social e política” e na ressaca das manifestações de Junho de 2013 e do Campeonato do Mundo, Paulo Werneck não consegue imaginar um autor mais adequado. “Desde os anos 30/ 40 à década de 2010, Millôr atravessou todos os regimes políticos no Brasil e manteve notável independência. Era um grande céptico quanto às boas intenções dos poderosos de qualquer natureza. Foi uma pedra no sapato de todos os presidentes, principalmente do Sarney – passou meses destruindo, frase por frase, o romance O Brejal dos Guajás”, explica o curador. “Quando lemos frases de Millôr como ‘O poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe muito melhor’, não podemos deixar de pensar nos desmandos da NSA, por exemplo”, diz. Por isso, a espionagem americana denunciada por Snowden através de Glenn Greenwald será um dos temas abordados, e o jornalista estará entre os convidados. “Sem sectarismos partidários ou ideológicos, temos na programação grandes questionadores, críticos que interpelam o poder e suas novas formas no século XXI: a espionagem imperialista (Glenn Greenwald), o mercado financeiro e a corrupção na universidade (Charles Ferguson), as relações incestuosas entre media e poder (Graciela Mochkofsky e David Carr), o modelo de desenvolvimento no Brasil (Davi Kopenawa, Eduardo Viveiros de Castro), o horror do urbanismo no país (Paulo Mendes da Rocha), o agronegócio e a indústria da obesidade (Michael Pollan)”.
Um português: Almeida Faria
Quando lhe pedimos para definir a sua curadoria, Paulo Werneck recorda que na FLIP a curadoria não tem “o status autoral” que há, por exemplo, nas bienais de arte. Analisou o que viu nas dez edições a que assistiu e emulou tudo o que lhe pareceu que resultou: os grandes momentos que lá viveu, não só como editor ou como jornalista, mas também como espectador. “É uma forte carga de emoção. Se estou renovando o repertório, e por isso insisti em não repetir autores já convidados, é para cumprir uma vocação primeira da FLIP: apresentar autores ao público brasileiro.” Por isso tem orgulho de ter convidado Vladímir Sorókin, o primeiro escritor russo da história do festival, e de ter conseguido reunir o "núcleo amazónico" da programação.
Desde o ano passado que a arquitectura tem um espaço fixo na programação e para Werneck este é, aliás, o grande tema da FLIP, desde o início. Trata-se de abordar não só o “casario colonial de Paraty, mas sobretudo o direito à cidade, a cidade como garantidora de direitos, questão que atravessa e unifica o Brasil de hoje”. Também a ciência tem estado presente em quase todas as edições “e sempre rendeu discussões memoráveis”. Por isso Werneck convidou Andrew Solomon “para falar sobre a educação de filhos com identidade fora do padrão (autistas, anões, surdos, transexuais)" e, "de certa maneira, responder criticamente aos preconceitos que ainda perduram no século XXI”.
O único português entre os convidados é Almeida Faria (irá a Paraty lançar A Paixão, primeiro livro da Trilogia Lusitana, pela Cosac Naify), que estará em palco ao lado do escritor chileno Jorge Edwards. “São dois homens de letras daqueles que julgamos estarem em extinção”, defende Werneck. Apesar de no Brasil ser terem publicado e lido muitos autores portugueses nas últimas décadas, “Almeida Faria parecia ser uma daquelas lacunas persistentes": "Foi editado nos anos 80, mas escapou, por exemplo, à minha geração. E é um autor importante, que tem um ponto de contacto, que eu desconhecia, com um dos nossos maiores romancistas vivos, o Raduan Nassar, que admitiu ter ‘bebido’ em A Paixão para escrever Lavoura Arcaica.” “Lendo ambos, percebe-se a incrível máquina poética que é o romance contemporâneo e que incrível máquina é a língua portuguesa”, acrescenta o curador.
Edwards é um caso semelhante. Prémio Cervantes, era desconhecido no Brasil onde só agora foi editado. “Ambos são fenómenos inexplicáveis, ou melhor, explicáveis por nosso perfil ainda bastante carente em leitura e por nosso autocentramento. A FLIP, nesse sentido, ajuda o Brasil a ser menos autocentrado."