Escritor brasileiro Ariano Suassuna morre aos 87 anos no Recife
Autor de O Auto da Compadecida, obra central da moderna dramaturgia brasileira, e do influente romance A Pedro do Reino, Suassuna foi um incansável defensor da cultura popular brasileira
Depois do romancista João Ubaldo Ribeiro e do filósofo, pedagogo e psicanalista Rubem Alves, que morreram, respectivamente, nos dias 18 e 19, é o terceiro grande escritor que o Brasil perde no espaço de uma semana.
Conhecido sobretudo como dramaturgo – e em particular pela peça O Auto da Compadecida, que em 1956 o tornou célebre no Brasil e o deu a conhecer no estrangeiro –, tem também uma breve mas relevante obra ficcional, da qual se destaca Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), vulgo A Pedra do Reino, e ele próprio prezava a sua obra de poeta e lamentava que esta fosse comparativamente ignorada pelo público e pela crítica.
Activo até ao fim, desempenhava funções como assessor do governador de Pernambuco, último dos vários cargos públicos que ocupou, e que incluíram diversos mandatos como secretário de Cultura do Estado de Pernambuco.
Em Março deste ano, numa entrevista à TV Globo Nordeste, explicou que estava a acabar o seu novo livro, O Jumento Sedutor, no qual começara a trabalhar há mais de trinta anos.
Ariano Suassuna já tinha publicado poemas e várias peças de teatro – algumas delas premiadas, como Uma Mulher Vestida de Sol ou Auto de João Cruz, inspirado em folhetos de literatura de cordel, quando O Auto da Compadecida, publicado em 1955, se torna um sucesso nacional. A peça seria depois várias vezes adaptada ao cinema, primeiro pelo húngaro George Jonas (o autor do livro em que Steven Spielberg baseou o seu Munique), em 1969, com actores como Regina Duarte e Antônio Fagundes, e depois por Roberto Farias e Guel Arraes, respectivamente em 1987 e 2000. Também o seu romance A Pedra do Reino, que começou a escrever em 1958 e só publicou em 1971, deu origem a uma série televisiva, exibida em 2007 pela Globo.
Até meados dos anos 50, Ariano Suassuna foi acumulando a escrita literária com a advocacia, tendo depois trocado esta última pela docência universitária. Em 1956, torna-se professor de Estética na então Universidade do Recife (hoje Universidade Federal de Pernambuco), na qual deu aulas durante mais de 30 anos, até se aposentar em 1989.
O escritor foi ainda um dos fundadores e principais mentores do Movimento Armorial, lançado no início da década de 70, que pretendia desenvolver o conhecimento das diversas formas de expressão popular nordestina, da música e da dança à literatura de cordel ou ao teatro de bonecos, e criar as bases de uma arte erudita ancorada nessas raízes. Aos romances que publicou nessa década de 70, o já citado Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão. Ao Sol da Onça Caetana (1976), classificou-os o próprio autor como exemplos de “romance armorial-popular brasileiro”.
O assassinato do pai
Oitavo dos nove filhos do jurista e político João Suassuna e de Rita de Cássia Dantas Villar, Ariano Suassuna nasceu a 16 de Junho de 1927 na cidade da Paraíba (hoje João Pessoa), capital do Estado homónimo. Mais precisamente, veio ao mundo no Palácio da Redenção, sede do Governo, uma vez que seu pai era então presidente (hoje dir-se-ia governador) do Estado da Paraíba.
Em 1928, o pai termina o mandato e regressa ao interior, às suas origens sertanejas, instalando-se com a família numa das suas propriedades, a fazenda Acauhan. Tornar-se-á depois deputado federal e, nos poucos anos que lhe restam, viverá entre a sua propriedade e a capital do Estado.
Envolvido nos acontecimentos que precederam a revolução de 1930, que levaria ao poder Getúlio Vargas, João Suassuna foi falsamente acusado de cumplicidade no assassinato de João Pessoa, seu sucessor no governo do Estado da Paraíba e apoiante de Vargas. Embora não tivesse tido qualquer intervenção no crime, o pai de Ariano Suassuna foi morto a tiro em Outubro de 1930, no Rio de Janeiro, num acto de retaliação pela morte de Pessoa.
Ariano tinha apenas três anos e esta morte trágica iria marcar a sua vida e a sua obra. Do pai, um homem culto, grande leitor, e que também cantava e compunha versos, o futuro escritor herdou uma vasta biblioteca, na qual leu os românticos ingleses, os romances de Eça de Queiroz – apreciava especialmente A Cidade e as Serras –, ou Os Sertões, de Euclides da Cunha.
“Foi de meu pai, João Suassuna, que herdei, entre outras coisas, o amor pelo sertão, principalmente o da Paraíba, e a admiração por Euclides da Cunha”, disse Ariano Suassuna no discurso da sua tomada de posse como membro da Academia Brasileira de Letras, em 1990. “Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de Outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo”.
Após a morte de João Suassuna, a família mantém-se no sertão, mas muda-se para Taperoá, no norte da Paraíba, onde Ariano frequenta a escola primária e encontra um professor que o marcará, Emídio Diniz. Já octogenário, numa entrevista concedida em 2009 ao jornal literário Rascunho, presta homenagem ao magistério desse seu primeiro professor, assumindo-o como uma das principais influências que o levaram a querer ser escritor, a par das suas leituras por conta própria, na biblioteca herdada do pai, ou nas obras de Monteiro Lobato, oferecidas pela mãe.
É também em Taperoá que o futuro paladino da cultura popular nordestina assistirá ao seu primeiro desafio de viola, protagonizado por cantadores da região, e verá pela primeira vez uma peça de mamulengo, o teatro de bonecos local, cuja designação se pensa ser uma corruptela da “mão molenga” que mexia as marionetas.
Ariano Suassuna estudará depois no Colégio Americano Batista, no Recife, em Pernambuco, mas regressa nas férias a Taperoá, até que, em 1942, a família se muda definitivamente para o Recife.
Aulas-espectáculo
Ainda antes de entrar para a Faculdade de Direito do Recife, o escritor publica o seu primeiro poema, Nocturno, no Jornal do Comércio, em 1945. Nos anos seguintes, já estudante universitário, convive com escritores e artistas pernambucanos, envolve-se na criação do Teatro do Estudante de Pernambuco, organiza encontros de violeiros e estreia-se como dramaturgo, em 1947, com a já referida peça Uma Mulher Vestida de Sol, história de um amor proibido entre dois jovens sertanejos.
No final da década de 40 aproxima-se do Partido Comunista Brasileiro, mas rapidamente se afastará, incapaz de se rever na cartilha do realismo socialista. Igualmente crítico do capitalismo e do comunismo, acabará por aderir ao Partido Socialista Brasileiro, do qual era “presidente de honra”, e que já divulgou um comunicado a lamentar o seu desaparecimento.
Na primeira metade dos anos 50 escreve várias peças, incluindo um texo para teatro de mamelungo, Torturas de um Coração ou Em Boca Fechada Não Entra Mosquito, que ele próprio monta em Taperoá, onde passa algum tempo para se curar de uma doença pulmonar.
Licenciado em Direito, começa a trabalhar como advogado em 1952, enquanto vai escrevendo novas peças, como O Castigo da Soberba (1953) ou O Rico Avarento (1954). Em 1955 escreve a obra que o celebrizará, o Auto da Compadecida, inspirada na literatura de cordel, que narra as pícaras aventuras e desventuras de João Grilo, tão pobre quanto engenhoso, que passa a vida a inventar esquemas para ganhar algum dinheiro, como o de convencer o padre local a fazer um funeral, em latim e tudo, ao cão da sua patroa, inventando para o efeito um testamento (do cão, naturalmente) que beneficia o dito padre, o sacristão, e até o bispo, e com o qual Grilo também espera apanhar qualquer coisa.
Em 1956, no mesmo ano em que se afasta da advocacia e se torna professor de Estética, conclui o seu primeiro romance, A História do Amor de Fernando e Isaura, que só será publicado em 1994.
Em Janeiro do ano seguinte casa-se Zélia de Andrade Lima, de quem terá seis filhos, e que terá tido uma influência decisiva na conversão do escritor ao catolicismo. O casal viverá sempre no Recife.
Também em 1957, Ariano Suassuna escreve outras das suas peças mais apreciadas, O Santo e a Porca, transposição de uma comédia clássica de Plauto (que já inspirara O Avarento de Molière) para o contexto nordestino. A porca do título é feita de madeira e serve de mealheiro ao sovina Euricão Árabe.
Após ter experimentado o dedo como romancista em A História do Amor de Fernando e Isaura, começa a trabalhar em 1958 na sua grande e complexa obra ficcional, Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, que se inspira no episódio histórico de uma ressurreição do mito sebástico que teve lugar no século XIX em pleno sertão nordestino. O narrador e protagonista é D. Pedro Dinis Ferreira Quaderna, preso por subversão em Taperoá, que sonha tornar-se o génio da raça brasileira, e que reaparecerá noutras obras ficcionais e dramatúrgicas de Suassuna. Quando em 1971 foi finalmente publicado este romance de quase 800 páginas – e que era apenas a primeira parte de uma projectada trilogia –, a crítica recebeu-o como uma das obras-primas da literatura brasileira do século XX.
Até ao final da vida, o autor vai-se dividir entre a docência – em 1960, acrescenta ao seu currículo académico uma licenciatura em Filosofia – e a criação literária, publicando novas peças de teatro, como A Pena e a Lei (1959), Farsa da Boa Preguiça (1960) ou A Caseira e a Catarina (1962), o já referido romance História d'O Rei Degolado, e ainda vários livros de poemas.
Ariano Suassuna acreditava que “todos os grandes personagens do teatro e do romance” eram também “grandes pecadores”, a começar pelos heróis shakespearianos. Na entrevista de 2009 ao jornal Rascunho, profetiza: “São Paulo diz que o pecado vai acabar e, apesar de ser um homem com uma visão religiosa, lhe garanto que quando isso acontecer o romance acaba junto”.
Embora se tivesse aposentado há muito da docência, Ariano Suassuna continuava a dar em escolas, teatros e noutros locais as suas “aulas-espectáculo”, fazendo-se muitas vezes acompanhar de músicos e dançarinos.
Em toda a sua longa vida, nunca viajou para fora do Brasil. Não gostava de viajar e detestava aviões. Mas quando fez 80 anos, as homenagens que lhe prestaram obrigaram-no a percorrer o Brasil. “Se soubesse que chegar aos 80 anos daria tanto trabalho, teria ficado nos 79”, brincou então. E era mesmo a brincar, porque até ao fim fez sempre gala da sua alegria e entusiasmo de viver. No final de 2013, quando retomou, após ter estado doente, as suas aulas-espectáculo, avisou a morte que esta teria de “suar” se o quisesse levar. “Se vier com essas besteirinhas de infarto e aneurisma no cérebro, isso eu tiro de letra".
Notícia corrigida às 16h00 para acrescentar o nome de Rubem Alves aos grandes escritores que o Brasil perdeu nos últimos dias.