O cristal e a vidraça

Registo minucioso e fiel do quotidiano de um autor vocacionado para dizer a vida, tal como ela era

Foto
Os escritos diarísticos que Orwell legou à posteridade não deixam de constituir um ajuste de contas com a ideia de biografia

Um espírito de cristal, descrevia um livro clássico sobre George Orwell. A imagem surgira num dos poucos poemas detectáveis na ampla produção orwelliana. Em dois versos finais, anunciava-se que nenhuma bomba alguma vez detonada poderia estilhaçar o espírito de cristal. Este libelo contra a iniquidade da guerra e o fogo-fátuo das ideologias é um dos numerosos testemunhos cívicos saídos da criação do autor britânico, que não poucas vezes fez da escrita um canal privilegiado para definir a sua posição de cidadão lucidamente interventivo. Alguém, sobretudo, vocacionado para dizer a vida no seu lado mais concreto. Algumas páginas dos seus Diários, agora pela primeira vez publicados entre nós — numa edição cuidada e criteriosa, que é justo celebrar, e que recupera o trabalho de Peter Davison, autoridade máxima na matéria —, são o registo minucioso e fiel de uma vida necessariamente atenta à realidade circundante. É o caso dos Diários de Jura (a ilha das Hébridas que Orwell escolheu para refúgio do bulício londrino, onde praticou uma árdua agricultura e onde, por exemplo, acabou de escrever 1984), escritos a partir de 1946 — “Plantei cerca de uma dúzia de alfaces lá fora. Muito pequenas, por isso pus serapilheira a protegê-las. Curti outra pele de coelho (tenho de a abrir cerca de 5.7.46)” (p. 554). No entanto, já antes a sua escrita detivera em contextos sociais precisos. Pense-se, por exemplo, no seu livro de 1937, O Caminho para Wigan Pier (Antígona, 2003), espécie de novo Germinal, centrado, como aquele romance de Zola, numa comunidade mineira (“Todos nós devemos a nossa vida relativamente decente aos pobres diabos que lá em baixo, cobertos de pó negro até aos olhos, com as gargantas cheias de fuligem, manobram as pás com o aço dos seus braços e barrigas”). Os Diários registam, entre inúmeros outros aspectos, o trabalho preparatório de Orwell, a pesquisa de campo, que precedeu a escrita daquela obra: “O sítio onde os carregadores estavam a trabalhar era medonho, indescritível. A única coisa que se podia dizer a seu favor é que, no que toca às condições subterrâneas, não fazia especialmente calor” (p. 112).

Tanto o ensaísmo de George Orwell como a sua ficção formam expressões eloquentes e prodigiosas que tornam difícil não ler naquele cristal a metáfora exemplar do combate espiritual (e físico) travado por Orwell ao longo de duas décadas de escrita. O seu primeiro livro, Na Penúria em Paris e Londres (Antígona, 2003), misto de reportagem e ficção, é um dos testemunhos mais persuasivos da sua imersão no combate do dia-a-dia (“Não haver camas era um facto frequente nos asilos”), denunciando ainda um trabalho notável de composição e escrita, apesar de notórias rugosidades e desníveis. Também esta zona da sua obra conhece um poderoso paralelo na diarística. O Diário da Apanha do Lúpulo dá testemunho de um Orwell totalmente embrenhado na tentativa de sobreviver: literalmente a contar os tostões — “Não se consefue ganhar 30 xelins por semana, nem sequer chegar lá perto” (p. 31) —, a registar a escassez de agasalho, ou a lamentar a penúria do alojamento, sem nunca deixar de elencar, com rigor quase obsessivo, as circunstâncias socioeconómicas na génese destas complexas dinâmicas. Do mesmo modo que o Diário de O Caminho para Wigan Pier surpreende o escritor na tentativa frustrada de empenhar uma gabardina (das poucas peças de roupa que valorizava), ou um cachecol, que, por fim, lhe garante o sustento necessário.

Recorrendo a uma imagem em tudo evocativa daquela outra, George Orwell referiu-se às qualidades de transparência e nitidez da escrita, ao defender, em Porque Escrevo e Outros Ensaios (Antígona, 2008), que “a boa prosa é como uma vidraça”. Chegou mesmo a afirmar que esse atributo seria um dos constituintes do seu próprio estilo. Um elemento (em inglês: window pane) que está mesmo presente nos primeiros parágrafos de 1984 (Antígona, 2008): “Lá fora, do outro lado da janela fechada, o mundo parecia frio.” O espectro deste escritor situa-se, portanto, algures entre o vidro dessa trabalhosa simplicidade e o cristal do espírito clarividente e interventivo, com o impressionante esforço de um corpo frágil. Os últimos momentos dos Diários foram escritos menos de um ano antes da morte de Orwell (em Janeiro de 1950), já no Sanatório de Cranham, e dão conta da sua rotina diária durante os últimos estádios da tuberculose que o mataria: “Não há horas fixas para a visita do médico. Não há visita diária de rotina” (p. 734). Capaz de criar ficções pelo molde tradicional em romances como A Filha de Um Reitor (Livros do Brasil, 1989), Orwell soube escrever uma das mais notáveis (se não a mais) visões distópicas da humanidade, 1984; como conseguiu produzir, em A Quinta dos Animais (Antígona, 2008), uma genial alegoria da autocracia, que embora seja, superiormente, um ensinamento de ângulo político, constitui um cometimento essencial na história da narrativa ficcional. A percorrer toda a sua obra, a mesma inteligência, encarnação do cristal do espírito.

Este homem que tanto resistiu à possibilidade de ser biografado (e cujas primeiras biografias percorreram um caminho espinhoso) legou à posteridade um vasto conjunto de escritos diarísticos que são quase a imagem espelhada do registo biográfico — sem deixarem de consistir num profundo ajuste de contas com a ideia de uma biografia. Como testemunham estes extraordinários Diários. Baseada no trabalho fundamental de Peter Davison — referência máxima na área —, esta edição inclui as preciosas anotações do organizador original, permitindo acesso a pedaços de informação que, de outra forma, se perderiam, como aquele em que Davison recorda o pseudónimo usado pelo escritor: “Mas Gollancz fazia questão de ter um nome, e Orwell acabou por sugerir, entre vários outros, George Orwell. Continuaria a ser Eric Blair nalguns contextos e para os velhos amigos, mas os seus escritos a partir de então, à excepção de alguns que redigiu para a BBC, passaram a aparecer com o nome ‘George Orwell’” (p. 48).

Sugerir correcção
Comentar