Mocambo, o bairro mais africano da cidade
Subo à Madragoa num início de tarde quente. As ruas estão mergulhadas numa pasmaceira agradável, como se já fosse Agosto e o resto dos lisboetas tivessem abandonado a cidade. Há sinais das festas dos santos populares. Bancadas de madeira enfeitadas de várias cores e com anúncios a marcas de cerveja esperam vazias, ao sol, que regresse a noite e traga com ela a festa. Uma senhora espreita a uma janela enfeitada com uma sardinha-design.
Calculava já que procurar o Mocambo fosse tarefa inglória. A única referência ao antigo bairro africano — e mesmo assim apenas ao nome — está num pequeno papel junto da ementa do restaurante A Travessa, resumindo a história do local onde este se encontra, o antigo Convento das Bernardas do Mocambo.
Fundado no século XVII, por concessão de D. João IV, para as religiosas da Ordem de Cister ou de São Bernardo, e também conhecido como Abadia da Nossa Senhora da Nazaré do Mocambo, foi praticamente destruído no terramoto de 1755. Reconstruído anos depois, permaneceu como convento até à extinção das ordens religiosas em 1834, e a partir daí teve uma história atribulada — nele funcionaram colégios, teatro, cinema, a sede de uma filarmónica; foi mercearia e armazém e já no século XX foi habitação para um conjunto de famílias em situação económica muito precária, o que levou à degradação do edifício, só recuperado no final da década de 1990 pela Câmara Municipal.
Hoje funcionam ali o Museu da Marioneta e A Travessa, e o primeiro andar é ainda usado para habitação. No claustro do convento, está um grupo sentado a uma das mesas do restaurante, a conversar, e, por cima, a roupa a secar às janelas revela a presença de moradores. Mas da história do Mocambo, nada.
É na Internet que acabo por encontrar essa história, contada por Isabel Castro Henriques e Pedro Pereira Leite no trabalho Lisboa, Cidade Africana — Percursos e Lugares de Memória da Presença Africana, Séculos XV-XXI. Os autores acreditam que este é um caso único na Europa de um bairro, no centro da cidade, com um nome africano. “Mocambo, que em umbundo significa ‘pequena aldeia, lugar de refúgio’, como aliás o termo sinónimo quilombo, na língua quimbundo, pertencem à esfera das línguas de Angola”, explicam.
No Mocambo, bairro criado por alvará régio no final do século XVI, misturavam-se negros e pescadores, para além das religiosas dos vários conventos que ali existiam. Grande parte dos negros eram, segundo Isabel Castro Henriques e Pedro Pereira Leite, “livres ou forros” e trabalhavam “na esfera doméstica das famílias portuguesas” ou como varredores, caiadores, distribuidores de água, ou ainda levando, de porta a porta, bens alimentares, “bens de consumo como o carvão e o pescado, vendido por regateiras, brancas, pretas, mulatas, que corriam Lisboa de ponta a ponta”. Os homens trabalhavam também nos fornos de ferreiro ou nas olarias do Mocambo.
Entre os séculos XVII e XVIII, o bairro foi-se transformando e ficando cada vez menos africano e cada vez mais um bairro de pescadores, vindos sobretudo da zona de Ovar. O importante bairro do Mocambo foi-se diluindo com o tempo. Restou apenas uma Travessa do Mocambo e, por fim, mesmo esta desapareceu dando lugar à que é hoje a Rua das Trinas, onde existia o Convento das Trinas do Mocambo (actualmente sede do Instituto Hidrográfico) — curiosamente criado pela Ordem Hospitalar da Santíssima Trindade do Resgate dos Cativos, que tinha como missão ajudar ao resgate dos cristãos feitos escravos pelos árabes.
Mas uma das memórias que permaneceu, e que é citada naquele trabalho, tem que ver com um acontecimento já perto do final do século XIX, relatado pelo jornal António Maria: foi na Travessa do Outeiro, junto à Rua da Bela Vista à Lapa, que em 1880 se alojou a rainha “do Congo, D. Amália I, com a sua comitiva, quando se deslocou a Portugal para conhecer e prestar vassalagem ao seu senhor e soberano, o Rei de Portugal”. Nesse local, realizaram-se festas africanas, da “corte do Congo”, que os jornais classificavam como nada menos do que “assombrosas”. Mas destas, na pacatez de uma tarde de Julho, nem sinal.