As facas do melhor restaurante do mundo saíram das mãos de Paulo, the bladesmith
Paulo Tuna diz que não é ferreiro nem cuteleiro. O que gosta é de usar a forja e dominar o fogo. Uma das suas criações é a faca com cabo de ébano escolhida para ser usada no Noma.
Água, fogo, terra, tempo. Os elementos mais puros. É deles que são feitas as facas de Paulo Tuna.Encontramo-lo nas Caldas da Rainha, no espaço que partilha com um amigo ceramista no Centro de Artes, onde tem a sua bigorna e onde montou uma forja artesanal (que inclui até um secador de cabelo). Cabe aqui toda a sua oficina de ferreiro. E foi daqui que saiu a centena de facas feitas por encomenda para o Noma de Copenhaga, o melhor restaurante do mundo na lista do World’s 50 Best.
E, conhecendo a história, faz todo o sentido que seja este transmontano — que ganhou o seu primeiro canivete numa rifa quando tinha sete anos e que algum tempo depois pediu ao avô: “Tens de me levar a um ferreiro como deve ser” — que as faça. Mas, para perceber como isto aconteceu, o melhor será ouvir Leonardo Pereira, o português que trabalha no Noma e que foi o responsável por esta ligação.
“Andávamos à procura de umas facas do tipo puuko [facas tradicionais finlandesas], sólidas e não demasiado detalhadas”, conta por email a partir de Copenhaga. Percorreu até fóruns da especialidade, fez contactos, mas não conseguiu nada. Até ao dia em que resolveu digitar a palavra “ferreiro” no Google e acabou por descobrir que havia nas Caldas da Rainha um fazedor de facas.
Na verdade, Paulo não encontrou ainda a palavra certa para descrever aquilo que faz. “Ferreiro não sou, não sou especialista na arte de forjar. Cuteleiro também não. O que me interessa mesmo é trabalhar o ferro no fogo. Acabei por achar que a palavra que melhor me descrevia era bladesmith.” E é assim que aparece no Facebook: Paulo Tuna, the bladesmith.
Começou por objectos muito maiores — esculturas em aço. Formado na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, onde continua hoje a trabalhar como responsável da oficina de metais, teve, logo no primeiro ano do curso, um pequeno choque. “Foi em [19]95, 96. Em Trás-os-Montes, já gostava muito de desenhar, mas quando aqui cheguei vi que havia gente que desenhava muito melhor do que eu.” Com os professores que teve, foi descobrindo o prazer de trabalhar os materiais, a pedra, o ferro. “O pessoal sujava as mãos.”
A ideia das esculturas começou a interessar-lhe cada vez mais, e as peças, sempre grandes, foram nascendo. Mas a vida de artista implica uma série de contactos, uma ligação com as galerias, enfim, todo um esforço social que pesava a um rapaz que, quando era pequeno, “o que gostava era de fazer caminhadas pela serra, ficar longe da civilização” e que fala ainda da casa dos bisavós, “com a lareira ao meio, sem chaminé, e os dois velhotes lá dentro, no negrume”. Além disso, as galerias pediam-lhe desenhos, ou peças mais pequenas, quando o que ele queria era fazer “intervenções no espaço” e criar peças “em que quase até ao fim não soubesse o que ia sair”, como “se estivesse à espera de um acto divino”.
A pouco e pouco, foi-se interessando mais pelas facas. Por causa de um canivete que comprou para o avô, acabou por conhecer Carlos Norte, proprietário de uma fábrica de cutelaria com quem começou a colaborar, e pôs-se a estudar mais profundamente as características dos canivetes e facas portugueses. “Criei um blogue chamado A Navalha Portuguesa e comecei a recolher testemunhos. Queria perceber o que é um canivete português. A gente afia bem, mas são sempre canivetes de trabalho, toscos.”
Começou a aperfeiçoá-los, e um dia, em resposta a um desafio que lhe lançaram, fez também uma faca. Aprendeu a usar a forja, a dominar o fogo. “Fiz até um vídeo em que apareço a forjar no escuro ao som do Anel do Nibelungo [a ópera de Richard Wagner] e tento regular o aquecimento da forja com o andamento da música”, conta, sorrindo. “Quando se trabalha com o ferro, trabalha-se com os elementos todos, a terra é o carvão, a água arrefece as brasas e tempera o metal [dá dureza ao aço], o fogo é de onde tudo nasce. Quando se trabalha com o fogo, nunca se tem a certeza do que vai sair. É mítico.”
Abre gavetas onde guarda uma mistura de facas, algumas terminadas, outras que são ainda projectos em curso. Num pequeno caderno, vai fazendo desenhos, estudos. Algumas têm uma forma mais próxima da adaga, outra (já feita) é um estilete de cabo retorcido, outras são facas de trabalho, com a guarda em bronze batido, ou em corno de búfalo, as lâminas afiadas, a parte de cima tosca, martelada. “Não faço facas perfeitas; para isso, existem as fábricas.”
Percebe-se o que Leonardo Pereira viu nelas. São facas que nos transportam para florestas geladas, em que homens de mãos curtidas matam animais. “A ideia foi sempre ter ao mesmo tempo uma faca simples de manusear e que fizesse uma ligação ao mundo mais arcaico, vicking, remoto. As puuko são muito utilizadas pelos povos mais antigos das regiões mais a norte da Escandinávia, que respeitam e se alimentam ao mesmo tempo quase exclusivamente de veados ou alces, e a puuko é a faca usada tanto para matar como esfolar os animais”, explica Leonardo.
Paulo desenhou o protótipo da faca para o Noma — “refinei-a ao ponto de não parecer uma faca de caça” — e para o cabo escolheu ébano, o que lhe deu um trabalho suplementar, porque é “a pior madeira que existe para as lixas”. No restaurante de Copenhaga, encantaram-se com o resultado, e foi assim que de uma pequena oficina de ferreiro nas Caldas da Rainha saiu a centena de facas com que comem (e em certos casos recebem como prenda) os clientes do melhor restaurante do mundo.
Quanto a Paulo, o que quer é continuar a desenvolver o seu trabalho, experimentando novos modelos e aceitando (um número controlado de) encomendas. Neste lugar, a moldar o aço entre a bigorna e a forja, encontra “paz de espírito” — volta a ser o rapaz que caminhava pela serra em Trás-os-Montes, longe da civilização e em contacto com os elementos. Água, fogo, terra, tempo.