Por mais estéril que seja a discussão em torno da real idade da Língua Portuguesa (os 800 anos invocados por aí correspondem a um documento oficial de D. Afonso II, sendo meramente simbólicos), as comemorações lá se fizeram no Padrão dos Descobrimentos, com poesia e alguns discursos, crianças e balõezinhos, música e danças a condizer. A língua multifalou-se nos seus diversos tons e a coisa seguiu adiante, como sempre segue mesmo quando nada acontece. Ora aderindo aos redondos 800, a Academia Portuguesa de Cinema, com apoio da Assembleia Municipal de Lisboa, da Costa do Castelo Filmes e da Cinemate, exibiu na passada quarta-feira no Fórum Lisboa (antigo Cinema Roma, que em boa hora reanimou a sua programação, agora com filmes relacionados com os 40 anos do 25 de Abril) o documentário Língua, Vidas em Português.
Realizado por Victor Lopes, cineasta moçambicano radicado no Brasil há um quarto de século, o documentário (filmado em 2001) é uma curiosíssima viagem pelas voltas que o Português vem dando consoante as geografias, mas é também uma viagem por várias vidas, na maioria pobres ou muito pobres, que usam cada qual o Português a seu modo. Uma língua rica num mundo pobre, falada por pobres, mas também uma língua tão rica (por acção das culturas que dela se foram apropriando) que até se dá ao luxo de empobrecer.
“Cada vez temos menos palavras, cada vez usamos menos palavras”, diz a dada altura José Saramago, para lembrar que a riqueza conquistada pelo tempo nas expressões da fala ou literárias tem vindo a fazer um caminho inverso, empobrecendo. Como se nos esperasse um futuro onde um grunhir primitivo, monossilábico, viesse substituir a comunicação oral humana — a conclusão é do próprio Saramago, com uma irónica tristeza. Já João Ubaldo Ribeiro, escritor brasileiro que se apresenta como “usuário da língua”, dá outro exemplo. “Estamos [no Brasil] importando não só vocabulário mas também a sintaxe americana, a maneira de pensar americana, a maneira de colocar o raciocínio. Isso é que é gravíssimo. (...) Você ouve ‘porque nós vamos ir na festa depois, primeiro nós vamos ir no cinema’. ‘We will go’. Até isso tá indo embora, tá virando tempo composto em Português brasileiro.”
De um lado, Saramago diz: “Quase me apetece dizer que não há uma Língua Portuguesa. Há línguas em Português. (…) Mas não tira nada à evidência de que se trata do corpo da Língua Portuguesa, é um corpo espalhado pelo mundo.” Do outro lado, Ubaldo observa que “a que, futuramente, tenderá a ser a língua brasileira, ‘tá evoluindo muito”. Percebe-se, por esta declaração desassombrada de 2002, os medos que levaram ao estapafúrdio fingimento da ortografia unificada. Porque se o Brasil decretar uma “Língua Brasileira” (como ousaram os chilenos em relação ao espanhol) lá se vai o sonho dos 200 milhões. O filme, no entanto, não destrói a esperança, porque sublinha que, apesar da distância, da ausência, do desinteresse, a Língua Portuguesa povoa ainda, nas suas variantes, milhões de almas. “Toda noite”, anuncia o filme logo de início, “200 milhões de pessoas sonham em português. Estas são algumas delas”. Vale a pena vê-lo para nos revermos, nas nossas utopias e fragilidades. No Youtube há um excerto com boa resolução (http://goo.gl/kaF2G) e uma versão integral de má qualidade.
Falando de palavras e vidas: no mesmo domingo em que foi aqui publicada a minha anterior crónica, 22 de Junho, morreu-nos o Miguel Gaspar. Onde ele deixava Uma Linha a Mais (título da sua crónica regular no PÚBLICO, um dos mil e um trabalhos a que se dedicava por amor ao jornal e ao jornalismo) ficou uma linha a menos: a linha do seu pensamento, da sua visão das coisas, da sua contagiante boa-disposição. Milhões de linhas ele aqui escreveu, nenhuma delas a mais (apesar do título, que exprimia ideia bem diversa, como um passo à frente no sentido natural das coisas), e ligámo-nos a ele para sempre por causa disso e para além disso, naquela linha ténue mas firme que liga os vivos e resiste para lá da sua existência física. O Miguel continua, por tudo isso, do lado de cá do nosso pensamento.