A sombra dos raptos ainda escurece Maputo
Continuam a ser sequestradas pessoas na capital moçambicana, portugueses incluídos. Os casos não são resolvidos pelas autoridades, mas apenas com o pagamento de resgastes.
Quem faz as primeiras exigências de pagamento não está no mesmo lugar da pessoa raptada nem dos restantes criminosos. Este intermediário usa um telemóvel comprado na rua, pré-pago e facilmente descartável, e liga para a empresa ou familiar mais próximo da vítima. Começa por pedir um valor elevado, que, com o decorrer da negociação, tende a descer. Ao mesmo tempo, vai contactando com os operacionais no terreno, responsáveis pelo esconderijo.
Também aqui o período de angústia é variável: pode demorar 24 horas ou cerca de um mês até haver um acordo com quem negocia a libertação de quem foi raptado. Pelo meio, vai mudando de telemóvel, chegando a utilizar dez números diferentes para evitar o rastreamento.
Dos mais de cem raptos que aconteceram na cidade de Maputo em pouco mais de dois anos, não é conhecido um único cuja libertação tenha acontecido por intervenção da polícia local. Em todos os casos houve pagamento de resgate.
Este fenómeno criminoso, que atinge a sociedade moçambicana, tem afectado de forma mais directa a comunidade indo-paquistanesa mas também cidadãos portugueses. E, apesar do maior número de casos ter sido atingido nos finais do ano passado, fazendo disparar o sentimento de insegurança para níveis insustentáveis, continua a haver raptos na capital de Moçambique.
Olhando apenas para os casos que envolvem cidadãos portugueses (e que podem ter dupla nacionalidade), o último ocorreu a 27 de Maio. Nesse dia, um jovem de 17 anos foi raptado na rua José Craveirinha, que liga a avenida da Marginal à Julius Nyerere, uma das principais artérias da cidade. Acabou por ser libertado a 10 de Junho, mediante pagamento por parte da família.
O caso – o oitavo a envolver um português em dois anos - não teve grande repercussão em Portugal, tal como o de outro cidadão nacional, um empresário de 73 anos. Este sequestro durou três semanas até ser libertado em troca de dinheiro. Não houve danos físicos, mas chegou a ser ameaçado de morte. Assim que pôde abandonou Maputo, onde estava radicado há cerca de 18 anos, e veio para Portugal.
“A situação acalmou, depois do que aconteceu nos últimos meses do ano passado, mas ninguém acredita que o problema esteja resolvido”, referiu um outro cidadão português a residir em Maputo, que solicitou anonimato.
O mesmo sentimento é partilhado com vários responsáveis contactos pelo PÚBLICO que, na sua esmagadora maioria, pediram para não ser identificados. O clima na cidade está claramente mais desanuviado do que em Outubro, mas o simples facto de continuar a haver raptos e de nunca se ter condenado ninguém excepto alguns operacionais, incluindo agentes da polícia, deixando de fora os cabecilhas, parece dar razão a quem se mantém preocupado.
Alerta oficial
O próprio governo português mantém a vigília, já que, no site da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas ainda está em vigor um aviso destinado a quem tem a capital moçambicana como destino: “Face à actual situação de segurança em Maputo, onde se tem registado uma particular incidência de raptos, recomenda-se ao viajante a maior cautela nas deslocações, não frequentar locais isolados, evitar as rotinas, incluindo não efectuar diariamente os mesmos percursos, não exibir bens com valor monetário significativo e manter sempre a família ou pessoas de confiança informadas sobre as deslocações”.
O facto de haver agentes da polícia envolvidos nos sequestros, apoiando o crime organizado, e de não se saber até que nível responsáveis da segurança pública poderão estar envolvidos, acentua a desconfiança para com as autoridades e ajuda a manter o sentimento de insegurança.
Em Dezembro, o próprio Procurador Geral da República, Augusto Paulino, afirmou que “os raptos não cessarão enquanto não houver uma profunda purificação dos infiltrados no nosso seio”. Elementos da Policia Judiciária chegaram a deslocar-se a Maputo, numa lógica de cooperação entre os dois países, mas acabaram por voltar para Portugal sem ter concluído o seu trabalho.
Menos portugueses
O fenómeno dos sequestros em Maputo levou à saída, no final do ano passado, de diversas pessoas que ali estavam radicadas. Alguns empresários de origem asiática operam agora os seus negócios a partir de Joanesburgo ou do Dubai, viajando apenas para a capital moçambicana quanto têm de tratar de alguns negócios.
Há também quem tenha colocado os familiares mais directos fora do país, ou opte para não os levar para Maputo quando ali é colocado. Por outro lado, também se assiste a uma estabilização do fluxo de portugueses a Moçambique, contrariando a tendência de crescimento que se registava.
De acordo com dados divulgados pelo cônsul-geral de Portugal em Maputo, Gonçalo Teles Gomes, até Abril registaram-se 724 pessoas, menos quatro do que no mesmo período em 2013. Isto significa, segundo afirmou recentemente à Agência Lusa, que "o fluxo estabilizou em comparação com os outros anos", estabelecendo um elo de ligação entre estes números e a insegurança.
Este fenómeno tem levado ainda ao adiamento ou cancelamento de alguns investimentos. O Grupo Valouro, ligado à produção avícola, adiou um investimento estimado em 140 milhões de euros para produzir de aves e rações.
"Falta libertarem os terrenos, mas, mesmo que essa burocracia tivesse resolvida, os raptos e assaltos constantes nas estradas [devido ao reacender do conflito entre a Frelimo e a Renamo] levaram-nos a retrair. Vamos ver se melhora ou não", afirmou no início de Maio o presidente do conselho de administração do grupo, José António dos Santos, à agência Lusa.
Diferentes níveis de insegurança
Quem organiza os sequestros, que acontecem ao início do dia, conhece os hábitos das vítimas e está a par da sua condição financeira, embora, por vezes, se confunda património com liquidez (pedindo elevadas somas de forma rápida, quando o dinheiro está aplicado em activos). Por vezes, quem paga os resgates tem de pedir empréstimos de modo a poder responder às exigências dos criminosos.
Os montantes pedidos variam, seja pelo perfil de quem é raptado seja pelo perfil dos sequestradores. É que o sentimento de impunidade atraiu novos criminosos, que se contentam em pedir somas mais baixas, em vez de passarem a barreira do milhão, como sucede nos casos com “mão profissional”.
“Moçambique não passou a ser o inferno, mas também não é o paraíso. Aliás, nunca foi”, sintetiza um cidadão português. Outro afirma que, no seu quotidiano, “as pessoas estão mais cautelosas, de sobreaviso”. As zonas onde mora quem tem mais dinheiro reforçaram segurança das residências, e houve mesmo quem mudasse de hábitos até hoje.
Um empresário português, que antes de Outubro se deslocava livremente para todo o lado, sem motorista, agora tem um condutor profissional e seguranças que o acompanham num segundo veículo.
Tal como acontece com os sequestros, também continuam a registar-se ameaças telefónicas ou feitas através de mensagens por telemóvel. São uma espécie de segunda camada da insegurança, aproveitando o ambiente criado pelos raptos. Nestes casos, exige-se dinheiro para evitar um sequestro, dando a conhecer algumas informações pessoais rudimentares, como o nome dos filhos e escola que frequentam.
A quantia, que pode rondar os 50 mil meticais (cerca de 1250 euros), já foi paga por alguns dos visados, mas o próprio consulado português recomenda que se ignore estas ameaças que tentam explorar o medo. "Todos os raptos que ocorreram nunca foram anunciados ou antecedidos de ameaça - um rapto faz-se, não se anuncia", afirmou Gonçalo Teles Gomes à lusa.
De acordo com o cônsul, todos os casos de extorsão, com ou sem pagamento, não foram seguidos de raptos. "O nosso conselho é sempre não pagar e dizemos às pessoas para trocarem de número de telemóvel e não responderem a chamadas de origem desconhecida", afirma.
As forças policiais locais são também o núcleo da terceira camada do ambiente de insegurança, através das extorsões que fazem aos automobilistas, com destaque para quem está de visita ao país. “Não há turistas a serem raptados, só extorquidos”, sintetiza um residente em Maputo. A polícia, conhecida de forma algo depreciativa como os “cinzentinhos”, armada com AK-47, manda parar um táxi ou um veículo, e rapidamente percebe o potencial de extorsão perguntando, por exemplo, há quanto tempo a pessoa está no país. Se está há pouco tempo terá mais dinheiro, se é a primeira vez o impacto é maior.
O “refresco” pode chegar aos 10 mil meticais, ou até acabar a capacidade de levantamentos do cartão multibanco. Se se pagar, mesmo que pouco, pode-se incorrer num crime de corrupção e, com isso, ter de avançar ainda com mais dinheiro, ou, em última instância, até ir para a prisão.
Para quem reside na capital moçambicana, o alastramento das extorsões, que tal como os raptos também não têm sido alvo de um combate profundo por parte do Governo e das autoridades, leva a menos saídas à noite ou a escolha de caminhos alternativos.
Para Adriano Nuvunga, o director do Centro de Integridade Pública (CIP), organização não governamental ligada à transparência e boa governação, os raptos “surpreenderam muito a sociedade moçambicana, que não estava habituada a este tipo de crime”. Para este responsável, “falta uma reflexão sobre o que está por trás de isto tudo, onde é que está o problema”.
Essa reflexão, realça Nuvunga, ainda não foi feita. “Mas impõe-se que aconteça, para compreender as motivações deste tipo de fenómenos”. Até que se combata as suas origens, Maputo vai viver com a sombra dos sequestros.