Armando Guebuza: "Gostaria de deixar a presidência com o assunto da paz claramente fechado"

O Presidente cessante de Moçambique vai deixar o cargo depois das eleições de Outubro, mas entende que deve continuar a usar a sua influência e rejeita ser retirado “da lista das que pessoas que possam ter opinião sobre o futuro do país".

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Guebuza gostaria de deixar Moçambique em paz João Manuel Rocha, Manuel Carvalho, Joana Bourgard

Guebuza, 71 anos, que deixa a Presidência mas se mantém como líder do partido governamental Frelimo, rejeita as críticas de quem considera que continuará a ser ele o chefe de Estado por interposta pessoa, mas entende dever usar a sua influência “para bem” do povo moçambicano. Numa curta entrevista ao PÚBLICO, em plena visita oficial a Portugal, esta semana, contesta também a ideia de que o crescimento do país não está ainda a beneficiar os moçambicanos.

Deixa o país com uma taxa de crescimento económico elevada mas ao mesmo tempo o processo de paz está ameaçado. Como é que se sente entre indicadores tão díspares?
Continuo a acreditar na paz e a acreditar que para ser alcançada só pode ser pela via que seguimos, que é através do diálogo. Esperamos chegar aos resultados que interessam a todos nós moçambicanos. Se há um crescimento económico que é espectacular, ele vai servir como incentivo para acelerarmos os processos para alcançar a paz.

Sente-se confortável, acha que tem feito tudo o que pode para alcançar a paz?
Confortável não, porque gostaria que não houvesse um tiro em Moçambique. Acredito que estamos no caminho certo, apesar de alguns “sobressaltos” pelo caminho, alguns impasses, mas os processos de paz são sempre assim.

Os moçambicanos olham para o seu Presidente como aquele que deve tomar a iniciativa. Dentro da preocupação com a estabilização do país que passos tenciona dar? Está previsto algum encontro com Afonso Dhlakama?
Desde o princípio que manifestei publicamente o meu interesse em encontrar-me com Dhlakama. Acontece infelizmente que ele sempre se furta ao encontro. Mesmo assim continuaremos a trabalhar de modo a ele aceitar um encontro comigo e a vir a Maputo. Tomei várias diligências através de amigos comuns – digo amigos comuns entre aspas – para comunicar a ideia de que seria bom que nos encontrássemos e ele furta-se ao encontro.

Por ter sido um dos protagonistas dos acordos de paz, que papel acha que ele devia ter na actual fase de Moçambique?
Ele sempre foi convidado a ter papéis e concorda, quando fala. Mas quando chega o momento de assumir esses papéis furta-se, afasta-se. Por exemplo, como líder do maior partido político da oposição tem o direito de ser membro do Conselho de Estado e não aparece nas reuniões.

Nesse processo de entendimento houve alguma imposição da sua parte, alguma coisa que lhe tenha desagradado? Como é que explica que havendo da sua parte vontade para dialogar ele não apareça?
Só ele pode explicar. Eu faço o que posso fazer. Deve-se lembrar que me encontrei com ele duas vezes em Nampula. Do meu lado, dei todos os sinais de querer falar com ele olhos nos olhos e ele furta-se. Mas não estou desanimado.

Acha que será possível um entendimento?
Acredito, acredito.

Durante o seu mandato?
Não tenho datas, não sou adivinho. Depois disso é importante para o país mas já não sou eu. Obviamente gostaria de deixar a presidência com esse assunto claramente fechado.

Por limitação constitucional não se pode recandidatar, deixa a Presidência mas continua a ser líder da Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique]. Isso não vai condicionar o próximo Presidente, admitindo que seja eleito o candidato da Frelimo?
Ouça, nós temos uma história e eu penso, a apoiar-me na nossa história, que não se põe o problema porque as tarefas de um e de outro são claras, são diferentes. Complementam-se na medida em que todos se preocupam com o bem do povo, mas cada um exerce a sua função em conformidade com as suas responsabilidades

Qual foi a sua responsabilidade na escolha de Filipe Nyussi [o candidato da Frelimo]?
Eu fui um dos votantes, foi o meu papel.

O seu papel foi o de o indicar, tem um peso mais significativo …
Obviamente, sou dirigente do partido. Mas também houve outros que concorreram.

Quais são as suas expectativas…
Relativamente à vitória?

... E ao próximo ciclo.
Acredito que a vitória é possível e que, sendo votado o Filipe Jacinto Nyussi continuaremos com o respeito pelas ideias da população. Mas obviamente ele vai adaptar-se às condições que encontrar.

Conhece a opinião de analistas que dizem que com a eleição de Filipe Nyussi, o Presidente continuará a ser Armando Guebuza por interposta pessoa?
Peguemos nessa opinião e imaginemos que seja correcta - é preciso primeiro verificar se é correcta ou não. E o ponto é: porque é que eu sou o único que não tenho direitos? Querem que [ele] seja [Presidente] sob a influência de quem? De outros? Quem são esses outros? Que legitimidade têm para tal? Porque sou eu o único excluído?

Não sei se me fiz entender bem. As opiniões são de que com Filipe Nyussi o Presidente será efectivamente Armando Guebuza.
E qual seria o mal?

Queria que comentasse.
Primeiro, penso que tenho direitos. Sou cidadão, sou dirigente, tenho responsabilidades e devo utilizar essa influência que tenho para o bem do nosso povo. Em segundo lugar, ele vai ser votado e vai definir o que vai fazer. Existe um manifesto e esse manifesto é que vai orientar a actividade dele. A personalização das coisas é que não funciona, retira-me automaticamente da lista das pessoas que possam ter uma opinião sequer no processo futuro. Não faz sentido. Sempre que me virem falar com ele vão dizer: “Aí está ele, está a influenciar”. Eu sou o mau da fita. Alguma coisa de mau cometi naquele país ou no partido…

Só para que fique claro: com o candidato da Frelimo na presidência e com o actual Presidente na liderança do partido, o Presidente da República formalmente será Nyussi…
Não só. É ele que que vai assinar os decretos e promulgar as leis, com responsabilidade.

Rejeita as opiniões dos que dizem que quem vai mandar é Guebuza.
É demasiado simplista dizer-se isso, mas é isso que eles dizem…Filipe Nyussi é uma pessoa adulta, comprovadamente responsável, e que vai trabalhar com base naquilo que ele pensa que realiza os objectivos do povo moçambicano.

O crescimento económico de Moçambique tem sido mais resultante do comércio e da descoberta de grandes quantidades de recursos minerais, mas o modelo está a criar mais desigualdade. Como vai ser possível promover um crescimento em que as diferenças entre as pessoas mais ricas e as mais pobres sejam menores?
É preciso ver em que país se resolveram os problemas de desigualdade económica logo que começa uma nova fonte de riqueza. Eu não conheço nenhum país. Qual será? O problema é como é que nós vemos o crescimento de Moçambique. Temos que ter em conta que a base desse crescimento de 7% ao ano vem de há mais de dez anos. Faz parte da cultura moçambicana fazer isso. E o crescimento baseia-se na agricultura, no turismo, nos serviços, muito pouco na indústria, na energia e agora é que começam a aparecer esses tais recursos. E esses recursos, como o gás, ainda não estão explorados, ainda estão para vir. É todo um processo que vai ainda levar dez anos até que tenhamos todas as condições logísticas para pôr todo esse carvão e todos esses recursos em movimento. E com isso queremos industrializar o país. O carvão não é só para vender. O gás não é só para vender. É também para modificar a base da estrutura económica do país, envolvendo mais os moçambicanos. Em tudo isso nós temos um princípio que é o princípio de quase todos os Estados modernos: é através do Orçamento de Estado que se faz a distribuição. Mas como temos ainda um orçamento deficitário, essa distribuição vai ser também deficitária. Quando começarmos a ter um orçamento um bocadinho mais robusto, obviamente que a criação de condições para uma melhor distribuição será também significativa.

Os impostos resultantes dos recursos minerais cresceram 60% entre 2011 e 2012 e acredita-se que essa taxa de crescimento se vai manter. Será possível estabelecer por lei que parte desta riqueza vai ser distribuída?
Em Moçambique temos uma economia pouco desenvolvida. O orçamento ainda depende de fontes externas, que estamos a reduzir agora. Por que é que eu dar o salto antes de resolver esses problemas. Primeiro temos de ter um orçamento robusto para apoiar as infra-estruturas sociais e outras.

Mas o crescimento tem revelado contrastes e a desigualdade….
Mas alguém lhe dá números sobre esses contrastes? Não dão.

Três quartos da população vivem da economia informal…
Sim, mas os números sobre a economia informal estiveram sempre assim. E agora há mais gente na economia informal por causa dos recursos que estão a aparecer. E a batalha é como formalizar. A formalização não resolve automaticamente o problema da equidade. A equidade é resolvida através do acesso mais fácil a escolas – e nós temos universidades a dois passos dos cidadãos, mesmo no campo, escolas secundárias também, ensino técnico, ainda não o suficiente, mas também, hospitais e maternidades mais próximas. Há estradas que estão sendo construídas e que estão sendo asfaltadas. É a distribuição.

Consegue fixar no tempo o momento em que os moçambicanos comuns vão sentir os benefícios do crescimento?
Já estão a tirar. Uma pessoa que fazia 40 quilómetros para ir para uma maternidade e que hoje faz cinco, isso o que é? Não é um benefício? Uma pessoa que tinha de fazer 200 quilómetros para ir à capital para frequentar uma escola secundária e hoje em todos os distritos temos dessas escolas, isso o que é? Uma pessoa que nunca tinha visto electricidade na sua vida e que hoje tem electricidade na sua casa, num distrito no campo, isso não é distribuição?  

Como é que interpreta os sinais de descontentamento, que se revelaram no ano passado com manifestações, ou os sinais dados à Frelimo nas eleições autárquicas?
Estamos numa sociedade dinâmica. E nas sociedades dinâmicas há várias opiniões diferentes sobre as mesmas coisas. Estão a reflectir sobre a realidade e querem que a realidade se modifique. Nuns casos têm razão, noutros casos não têm razão.

Há críticas à Frelimo nesses movimentos. É voz corrente que quem não é da Frelimo não tem acesso a lugares…
Há-de notar que os que criticam são os que não pertencem à Frelimo. Uma coisa interessante: nós tivemos 53 municípios em eleições. Dos 53, 49 ficaram com a Frelimo e quatro não. E diz-se que há críticas à Frelimo. É incrível.

Há uns meses falou-se muito em Moçambique e em Portugal dos raptos. Hoje fala-se menos, mas o problema permanece. O que está a ser feito para ultrapassar essa situação, até porque, pelo meio, houve acusações de envolvimento da polícia?
Como disse, e bem, ouve-se cada vez menos falar disso, o que quer dizer que houve um trabalho para neutralizar esse tipo de atitudes que desestabilizam todo o mundo, nacionais e estrangeiros. Em segundo lugar, temos de compreender que os crimes transnacionais são difíceis de controlar estando sozinhos. Estamos a associar-nos à região, ao continente, e mesmo através da Interpol, para estudarmos como tratar estes problemas.

Disse nesta sua viagem que “Portugal pode fazer um bocadinho mais para ajudar Moçambique”. Referia-se exactamente a quê?
Eu fiquei impressionado quando vi ontem [terça-feira] no Hotel Tivoli , empresários, que não tinham onde sentar-se. A sala estava cheia. Além daqueles que trabalham habitualmente connosco em Moçambique, há mais portugueses, empresários, que querem ouvir sobre Moçambique. E acredito que querer ouvir é também concretizar. Fazer um pouco mais do que está sendo feito hoje, que não é mau.

Admite facilitar a entrada de quadros portugueses em Moçambique, como professores, engenheiros ou médicos?
Nós temos cimeiras bilaterais e aí traçamos programas. Se os programas são aprovados pelas duas partes, por que não?

A entrada da Guiné Equatorial na CPLP vai alterar a natureza da comunidade, não lhe parece? Portugal ficou isolado nessa negociação. Como viu esse processo?
Foi tudo consensual. Há quantos anos é que estamos a discutir este assunto? Chegou-se a uma conclusão e avançámos. Estamos juntos. Este processo mostra o prestígio que a CPLP está tendo. É bom que haja muitos países interessados [em entrar na CPLP]. Mas temos de ser muito criteriosos. A nossa língua deve ser cada vez mais mundializada e o nosso tipo de solidariedade deve crescer para além do que somos. Isso faz-se também através destas injecções de países, quando criteriosamente escolhidos.

O que é que vai fazer quando deixar de ser presidente?
Pelo menos vou ter umas férias. Depois vou ver o que se faz.

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