Quando uma criança não fala bem…
A fala pode ser definida como o acto motor da expressão verbal, apresentando como características a articulação dos sons, o timbre da voz ou o ritmo do discurso. A linguagem é uma função cerebral muito complexa que utiliza um conjunto de símbolos para expressar ideias e pensamentos. No seu conjunto, a fala e a linguagem são fundamentais para a comunicação verbal e facilitadoras da integração social.
Ainda durante a gravidez, o feto é capaz de distinguir sons da língua materna e a voz da mãe e logo nos primeiros meses após o nascimento começa a emitir sons, mais tarde a palrar e a produzir palavras e depois frases. A estrutura do discurso e a capacidade de adequação do mesmo ao contexto social sofrem modificações ao longo dos anos, sendo também influenciadas pelas capacidades cognitivas da criança. O nosso vocabulário é expandido durante toda a vida, pelo que se pode afirmar que o desenvolvimento da linguagem nunca termina.
O desenvolvimento da linguagem surge em todas as culturas e línguas, porém com diferenças no modo de aquisição dos sons produzidos ou da estrutura gramatical das frases. Existem igualmente variações, consideradas normais, no número de palavras, construção das frases ou inteligibilidade do discurso em crianças da mesma idade. Enquanto algumas crianças dizem desde muito cedo várias palavras inteligíveis, que mais tarde juntam e constroem frases progressivamente mais complexas, outras produzem inicialmente um discurso com frases longas, porém difíceis de entender mesmo para os familiares próximos.
São considerados sinais de alarme a criança não palrar consoantes ou vogais aos 8 meses, não apontar aos 12 meses, não dizer nenhuma palavra aos 16 meses, não fazer expressões de duas palavras aos 2 anos, não construir frases aos 3 anos, usar uma linguagem incompreensível para os pais aos 2 anos e para estranhos aos 3 anos, não contar uma história aos 3 anos, ter erros na articulação das palavras aos 6 anos, ou existir uma suspeita de regressão da linguagem em qualquer idade.
O desenvolvimento da linguagem ocorre espontaneamente numa criança saudável, sendo para tal necessário que tenha um nível cognitivo adequado, audição mantida, aparelho fonatório (estruturas envolvidas na fala) íntegro, seja convenientemente estimulada e tenha vontade de comunicar. Assim, perante uma criança que não fala bem, devemos questionar se poderá ter uma surdez, atraso global do desenvolvimento, perturbação do espectro do autismo ou se a estimulação está a ser insuficiente.
Utiliza-se o termo Atraso Isolado de Linguagem quando a aquisição se faz de forma típica, embora mais tarde do que a idade habitual para cada etapa. Apresenta erros característicos na construção de palavras ou frases, por exemplo omitindo alguns sons ou produzindo erros gramaticais como “este carro é minho” ou “ouvam todos”. Esta perturbação tem geralmente uma boa evolução e entre os 4 e 5 anos de idade está recuperada.
Na Perturbação Específica do Desenvolvimento da Linguagem (PEDL) a aquisição é qualitativamente anómala e a criança comete erros diferentes dos referidos anteriormente no Atraso Isolado de Linguagem. Apesar de parecer que tem apenas dificuldade em se expressar verbalmente, compreendendo tudo o que lhe é dito, tal facto não se confirma quando é feita uma avaliação formal da linguagem.
Nem sempre é fácil distinguir entre uma variação normal e uma perturbação do desenvolvimento da fala ou linguagem. Sempre que existir alguma dúvida ou preocupação deverá ser partilhada com o médico assistente (médico família ou pediatra), que poderá referenciar para uma consulta especializada de Desenvolvimento ou Neuropediatria e se necessário pedir uma avaliação por um terapeuta da fala.
Quando se coloca a hipótese de perturbação da linguagem deve ser realizada uma avaliação da audição, nível cognitivo, desenvolvimento da linguagem e motor, integração social e comunicação. Raramente é necessário efectuar exames de diagnóstico como TAC, ressonância magnética ou EEG, excepto se há história de epilepsia, regressão da linguagem ou alterações no exame físico/neurológico.
A intervenção deve ser multidisciplinar e adaptada às necessidades específicas de cada criança, visando reforçar a interacção social e a intenção comunicativa. Consiste na reeducação e treino em terapia da fala e num enquadramento escolar adequado, não existindo medicamentos que estejam indicados para esta situação clínica. É fundamental prevenir e tratar os problemas emocionais, comportamentais e o isolamento associados a este tipo de perturbações.
O prognóstico das perturbações de desenvolvimento da linguagem é variável. Quando o diagnóstico é feito na idade pré-escolar, um terço das crianças recupera antes dos 6 anos. Porém, estas perturbações associam-se por vezes a dificuldades de aprendizagem, nomeadamente da leitura e escrita, perturbações emocionais e do comportamento e, mais tarde, dificuldades de inserção social e profissional.
Neuropediatra do CADin