O pior estava para vir, chama-se ISIS e prepara-se para destruir de vez o Iraque

Teerão diz-se pronto a colaborar com os EUA no “combate aos terroristas” que entraram no Iraque vindos da Síria e prometem só parar em Bagdad. Bin Laden morreu mas tem seguidores e dissidentes.

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Voluntários xiitas que responderam ao apelo de Sistani e se preparam para defender Bagdad Ali al-Saadi/AFP

Gente criminosa que se aproveita dos erros cometidos por políticos, líderes eleitos ou ditadores, gente sem escrúpulos que decapita e cruxifica como quem estala um dedo. Gente assim mete medo. E leva meio milhão de pessoas a fugir em dois dias de uma cidade de três milhões, como Mossul, no Iraque, e uma capital de seis milhões a fechar-se em casa. É Bagdad.

Gente desta não precisa de grandes exércitos, daqueles que estão prontos a enfrentar “dois conflitos simultâneos”, assim dizia a doutrina Powell (de Colin Powell), enterrada antes de tempo por Rumsfeld (Donald Rumsfeld). Os Estados Unidos saíram do Iraque em 2011 e não vão voltar. “Soldados no terreno” nem pensar, já disse Barack Obama. Ninguém esperava o contrário. O Presidente iraniano, Hassan Rouhani, diz que se Teerão vir “que os EUA agem contra os grupos terroristas” pode ponderar uma cooperação. Rohani também diz que alertou Washington para o que estava a acontecer na Síria. E é verdade, só que não é a história toda.

Já Bin Laden tinha desaparecido em Tora Bora quando Powell foi à ONU dizer que um dos motivos para invadir o Iraque era o terrorista jordano Zarqawi e as suas ligações a Saddam, que alegadamente o financiava e lhe dava abrigo (como os taliban afegãos a Bin Laden). Saddam não sabia muito sobre Zarqawi mas muitos iraquianos e norte-americanos demoraram pouco a descobrir. Houve gente queimada e pendurada em pontes, houve tantos, tantos atentados suicidas.

De tão brutal, os iraquianos dispostos a resistir e a aliar-se a quem viesse para tentar combater e expulsar os ocupantes acabaram por se aliar aos invasores para o derrotar. Zarqawi morreu, em 2006, debaixo de duas bombas de 500 quilos. Na altura, era líder da Al-Qaeda no Iraque. Sucedeu-lhe Abu Omar al-Baghdadi, que mudou o nome do grupo para Estado Islâmico no Iraque. Esse Abu foi morto, em 2010, por forças norte-americanas. Foi quando outro, o actual líder do que é hoje o ISIS, entrou em campo.

Abu Bakr al-Baghdadi soube aproveitar-se do caos que a repressão de Bashar al-Assad lançou na Síria e internacionalizou o grupo. Há dois anos, montou sede no país de Assad e cresceu, à medida que a guerra civil piorava e que os rebeldes, desaustinados, lutavam entre si. A Al-Qaeda herdeira de Bin Laden, chefiado pelo seu velho lugar-tenente, o egípcio Ayman al-Zawahiri, declarou que o ISIS não podia reclamar-se parte da Al-Qaeda – o seu braço na Síria era a Frente Nusra. Baghdadi fez pouco caso de Zawahiri, afirmando que ninguém o impedia de combater quem considerasse seu inimigo, Assad, os rebeldes sírios da oposição, a Frente Nusra.

Desde então, o ISIS conquistou vastas zonas no Norte da Síria, de Alepo à fronteira com a Turquia, passando por Raqqa ou Deir Ezzor, a leste. Em Idlib, mandou matar o líder da Frente al-Nusra, a sua mulher, os seus filhos e cada um dos seus familiares. Também fez cruxificar gente acusada de assassínio, decapitou e amputou um pouco por cada aldeia, vila ou cidade conquistada ou atravessada. Entretanto, fundou escolas, tribunais e hospitais, todos com a sua bandeira negra e branda içada. Em Raqqa, mandou até fundar uma autoridade que garante a qualidade alimentar.

O caos e as sanguessugas
O ISIS começou por ter centenas de homens. A seguir, vieram mais árabes dos países da região e muçulmanos da Ásia à Europa. Assad estava a vencer, o Irão ajudava, o Hezbollah libanês também. Nouri al-Maliki, primeiro-ministro do Iraque, apregoava a sua neutralidade enquanto deixava passar armas para Assad e milicianos iranianos e iraquianos para lutarem ao lado das milícias do regime sírio e de Beirute. O jihadismo não morava no Iraque antes da invasão nem na Síria antes da revolta, mas, como as sanguessugas, alimenta-se dos erros, do caos e do vazio. Espera, ataca e às vezes vence.

Os EUA começaram a partir o Iraque quando preferiram desbaasificar a reconciliar (dissolveram o Exército de Saddam, despediram os funcionários públicos, todos tinham cartões do Baas, o partido único, era a única forma de viver debaixo da ditadura, que nem todos apoiavam). Maliki continuou, autoritário e sectário, a marginalizar e enfurecer toda uma população. Os árabes sunitas iraquianos não gostam do ISIS nem de Baghdadi mais do que odiavam Zarqawi. Mas “estão dispostos a meter-se na cama com o diabo para derrotar Maliki, e esse é o perigo”, diz à Reuters Fawaz Georges.

“Estamos a assistir à fragmentação do poder”, resume o analista da London School of Economics. “O Governo de Maliki nunca será capaz de voltar a centralizar o poder como antes”. Entretanto, as forças de segurança (mais de 900 mil homens, entre soldados e polícias) treinadas e equipadas pelos EUA (que investiram nisso mais de 15 mil milhões de euros) dissolvem-se no ar, como os homens de Saddam se evaporavam à medida que os norte-americanos avançavam, do Kuwait até Bassorá, daí até Bagdad, em Março de 2003. Corrupção, falta de liderança, medo, suspeitas sem fim, é o Iraque dos últimos onze anos, como já era o Iraque de Saddam, preso por fios e pronto a implodir.

Regresso a casa
Em Dezembro, Baghdadi decidiu que era tempo de voltar a investir no seu Iraque – nasceu em Samarra, a cidade 125 quilómetros a norte de Bagdad onde a destruição da cúpula dourada de um mausoléu xiita, em 2006, fez explodir uma guerra civil sangrenta. Sunitas e xiitas iraquianos a matarem-se sem filtros, eram aos 100 e 200 mortos por dia nas ruas de Bagdad, não chegavam morgues nem coveiros. Agora, pode voltar a ser isso mas muito, muito pior, sem os EUA para pagar às milícias sunitas, sem os líderes religiosos xiitas a pedirem contenção.

O grande ayatollah Ali Sistani, líder máximo do xiismo iraquiano, afirmou nas orações desta sexta-feira que “os cidadãos que possam empunhar armas no combate aos terroristas, em defesa do seu país, do seu povo e dos seus lugares sagrados devem voluntariar-se e juntar-se às forças de segurança”. Em Teerão, Rouhani repetiu este sábado que está pronto a intervir e a ajudar o Iraque, garantindo que as autoridades iranianas ainda não lhe pediram que o fizesse. Já o Hezbollah estava na Síria há meses quando o admitiu e os iranianos fazem funerais de Estado a chefes militares sem anunciarem em que batalha síria foram mortos.

Primeiro, o ISIS conquistou parte do ocidente iraquiano, Falluja, Ramadi, junto à fronteira síria. Seis meses depois, lançou-se nesta conquista desenfreada, chegou em dias a Mossul, Tikrit, ameaça províncias inteiras e a capital.

O ISIS, calculavam até ao início do ano a maioria dos analistas, tinha três a cinco mil homens. Agora, conta com pelo menos 10 mil. Mas a cada cidade iraquiana conquistada as suas fileiras crescem – há jovens sunitas dispostos a tudo para enfrentarem Maliki e há unidades inteiras de seguidores de Saddam, que esperaram adormecidas, pelo momento de voltar a declarar guerra aos xiitas que ocuparam o poder e os humilharam.

Há dinheiro porque quando é preciso há dinheiro: as potências árabes sunitas, sauditas à cabeça, abrem os bolsos quando em causa está o fantasma ameaçador do xiismo.

EUA, Reino Unido, Damasco
Maliki garante que as forças de segurança iraquianas já começam a contra-atacar, travando os jihadistas e aligeirando a ameaça que paira sobre Bagdad. Maliki até foi a Samarra prometer que vai derrotar os rebeldes do ISIS – mas o ISIS já desceu em direcção a Bagdad, só que não quis Samarra, contornou-a, por agora.

Sabemos quem é Baghdadi e até lhe conhecemos a cara da mesma maneira que soubemos quem era Zarqawi. Os norte-americanos tiraram-lhe uma fotografia, neste caso depois de o capturarem. Baghdadi foi preso em 2005 e passou cinco anos numa base militar. Quando saiu, já a Síria ditara os seus passos seguintes. Bashar agradece. “Para Assad é uma situação excelente do ponto de vista político e geopolítico, Washington e Londres vão ver-se obrigadas a colocar-se ao lado de Damasco, face ao que surge cada vez mais como uma ameaça para a região, o Ocidente e a Europa”, explica Frédéric Pichon, francês e autor do livro Síria: Por que é que o Ocidente se enganou.

“Aqui estamos”, escreve no Facebook Basma al-Khateeb, iraquiana que nunca saiu de Bagdad apesar do medo e da violência. Abriu o primeiro cibercafé do Iraque, sonhou derrubar Saddam e só começou a perder a esperança nos últimos três anos, contava-nos em Março do ano passado, nos dez anos da invasão. Foi depois do fanatismo e do país entregue aos “loucos” e transformado numa “república das bananas”. Ficou. E ainda não é desta que foge. “Temos comida e… acesso à internet. Eles que venham.”

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