Lovers ou haters, mas nada de meios-termos!

Na arte, adoramos ser lovers ou haters; está-nos no sangue. Se adoramos uma banda não detestamos um seu concerto; nem aceitamos que o critiquem

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Gonzalo Fuentes/Reuters

Um dos livros que marcou a minha infância foi “Estrumpfe contra Estrumpfe”. Como qualquer banda desenhada que se preze, 'Os Estrumpfes' vivia da sátira ao ser humano, polvilhada com humor para todas as idades, adornada com o pormenor de, na língua daqueles seres azuis, muitas palavras serem substituídas por “estrumpfe”.

Na história fratricida enunciada, a aldeia vê-se dividida em Norte e Sul, porque uns dizem “saca-estrumpfes” enquanto outros defendem o uso de “estrumpfe-rolhas”. E as posições extremavam-se, ao ponto de decidirem pintar uma fronteira no chão da aldeia.

Podia ver-se o ódio espelhado no olhar de alguns habitantes; e eu, infante, não compreendia tamanha intolerância. Cresci a defender um mundo de tolerância, hoje apregoada por (quase) todos; e bem, claro. De que serve sermos do contra se contra nós nada vem?

Mas este pregão parece servir apenas para os assuntos “realmente importantes”, aqueles que impactam a vida; a nossa e a dos outros. Seremos assim tolerantes quando lidamos com percepções e sensações, quando abordamos a arte?

Claro que não. Na arte, adoramos ser lovers ou haters; está-nos no sangue. Se adoramos uma banda não detestamos um seu concerto; nem aceitamos que o critiquem. Se torcemos por um clube, vivemo-lo com o coração e não suportamos os seus rivais. Se detestamos um pintor, não vamos adorar uma das suas obras.

Somos fiéis ao que adoramos mas também ao que detestamos; podemos ser eclécticos, mas não indefinidos. E com isto criamos as nossas tribos. Somos azuis, verdes ou vermelhos, e naturalmente sentimo-nos diferentes dos restantes. Se somos punks, abominamos o rock “mainstream”; se somos expressionistas, troçamos dos impressionistas. E, de alguma forma, permitimos que estas classes nos definam.

Mas nunca deixei de sentir como meu o desespero daquele estrumpfe que, por azar, viu a fronteira ser pintada literalmente pelo meio da sua casa; ele sofria por ir à cozinha buscar um copo de água “estrumpfe” e chegar à sala com um copo de “estrumpfe” fresca...

Com tenra idade percebi que, quando as questões são emocionais, os meios-termos não existem; e cresci um pouco mais. Estarei ainda a falar de arte?

Mas há alturas em que queremos muito ser o “estrumpfe” indeciso, mas que não quer tomar uma decisão; aquele que aceita num dia ser Norte e noutro Sul; aquele para quem saca-estrumpfes e estrumpfe-rolhas servem exactamente para o mesmo: tirar o melhor partido da vida.

E por isso, adoramos um concerto de música contemporânea acompanhada por um Pollock, com a mesma intensidade que uma encenação da Flauta Mágica adornada por um Magritte, ou um Requiem por um El Greco. Bebemos um concerto de Pixies com um absinto, da mesma forma que um de Portishead com um copo de vinho, um Luiz Goes com vinho do porto, ou um Gogol Bordello com uma cerveja.

E tudo faz, estranhamente, mais sentido. Porque todas as formas de arte nos dão algum prazer, e trazem a vantagem de não termos de ser tribos dentro delas; são elas que formam tribos dentro de nós.

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