Como o mito de Orfeu fundou a bossa nova
Zé Miguel Wisnik, Arthur Nestrovski, Paula e Jaques Morelenbaum tocam e contextualizam em Lisboa as canções de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
No caso de Garota de Ipanema – o tema de Tom Jobim e Vinicius de Moraes que lançou a bossa nova, internacionalizou a música brasileira e ainda hoje é o postal sonoro do Rio de Janeiro –, o mito coloca-os na esplanada do Bar Veloso, observando uma jovem morena chamada Heloísa cuja beleza havia de provocar tão grande arrebatamento nos dois que, logo ali, surgia de um sopro tal canção. O bar em que os dois beberricavam diariamente está certo, o nome da rapariga também, mas a canção não nasceu de uma epifania. “Essas grandes canções parece que vêm prontas”, diz Zé Miguel Wisnik ao PÚBLICO. “Mas não é verdade. Os vários rascunhos de Garota de Ipanema mostram que a música já existia e eles demoraram a achar o mote e a encaixar a letra na música.”
Wisnik é músico e professor universitário de Literatura Brasileira, partilhando com o director da Orquestra Sinfónica de São Paulo e escritor Arthur Nestrovski, e a cantora Paula Morelenbaum o projecto Aula-show Vinicius e Tom: Palavra e Música que se apresenta esta noite, pelas 21h, no Teatro São Luiz (Lisboa), com o violoncelista Jaques Morelenbaum como convidado especial. Chamam-lhe “aula-show” porque a interpretação das canções do reportório de ambos é intercalada com comentários, teorias, histórias e estabelecimento de ligações. Querendo evitar o academismo de uma conferência, Wisnik e Nestrovski têm experimentado e afinado este formato com sessões sobre o samba, o tropicalismo ou a obra de Chico Buarque. E é assim, após uma reinterpretação de Garota de Ipanema, que explicam “como esta letra está profundamente ligada a poemas de Vinicius de Moraes dos anos 30 e 40, falando sobre a mulher que passa – a música é a actualização de um motivo poético profundo e recorrente na obra literária de Vinicius”.
Esse motivo poético, defende Zé Miguel Wisnik, é a ideia de mulher como salvação apaixonada e quase desesperada para Vinicius de Moraes, o cais a que precisa de aportar para a vida subitamente recuperar o sentido. “É a salvação da melancolia”, diz Wisnik. “A paixão é o fogo que ele ateia para se salvar, sendo infinita enquanto dura. Mas quando a paixão termina, ele cai na melancolia e só outra mulher o salvará disso.” Em Garota de Ipanema, nessa forma tão brasileira de concentrar alegria e tristeza num só verso, o poeta vê-se tomado por essa melancolia de estar só e suspira por um ser inatingível, algo presente “nessas canções, mas também nos poemas de Vinicius dos anos 30 e 40”.
Sabendo que muitas destas canções estão de tal forma impregnadas na cultura popular brasileira que os ouvidos as identificam de imediato como standards e são erradamente encaradas como guardadoras de poucos segredos, o quarteto propõe-se guiar o público num “retorno ao gesto inaugural” das composições, reavivando “o impacto que criaram no momento em que foram lançadas”. As estratégias podem passar por uma contextualização histórica, por desvendar algumas ideias por detrás da relação entre música e letra, ou pela gestão do encontro melódico, harmónico e poético. Ou ainda pela explicação de como “Tom Jobim constitui a linguagem da bossa nova, incorporando os acordes, as harmonias que vinham por um lado do jazz e por outro de Debussy e da música clássica”, continua Wisnik, de como tudo isso fez parte de uma solução original injectada para o interior do universo do samba.
Como Gershwin e Porter
Além do referido momento de criação de Garota de Ipanema, a aula-show dedica-se, por isso, a desconstruir algumas ideias incorrectas sobre a vida e a obra dos dois autores. Não se fica pela demonstração de que uma criação que soa maravilhosamente espontânea e imediata deu, afinal, muito trabalho para ser polida e atingida essa sensação –“a música busca ser coloquial e ter a prontidão da fala, mas isso não quer dizer que não haja muito trabalho ali contido”, reforça o músico –, mas lança-se igualmente, por exemplo, à recusa de que Tom Jobim fosse um plagiador da música norte-americana, como alguns teóricos defendem no Brasil. No espectáculo, "a gente mostra o Samba de Uma Nota Só, que foi acusado de ser um plágio da introdução de Night and Day, de Cole Porter, e evidencia as semelhanças e as profundas diferenças entre uma coisa e outra”. Curiosamente, segundo a escritora Rita Ruschel – que entrevistou Jobim em 1981 –, o compositor terá afirmado que nunca poderia ser “um Gershwin ou Cole Porter” no Brasil porque entender que no seu país “ter sucesso é ofensa pessoal”. Mas tal como Gershwin ou Porter, Jobim soube criar uma música popular transportadora de referências eruditas e recorrendo a um estilo de composição aprendido à porta fechada e não na rua.
Apesar da insistência dos músicos/contadores de histórias da aula-show na eliminação de mitos, há um que abraçam com fervor: o mito de Orfeu. E isto porque o encontro entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes dá-se precisamente em 1956, quando o poeta decide adaptar um texto teatral a uma peça musical, em que a história da mitologia grega é transposta para o universo das favelas do Rio Janeiro. Ao procurar um músico disposto a embarcar na sua peculiar visão e que assumisse a composição dos temas, Vinicius cruzou-se então com Jobim, encetando a primeira de muitas colaborações de uma dupla que revolucionou a Música Popular Brasileira. “Essa coisa de juntar África e Grécia com o Brasil”, afirma Wisnik, “é um conjunto muito forte na cultura brasileira. A relação de tragédia grega e Carnaval e favela e samba, de música com poesia, são coisas muito presentes no Brasil”. Nessa transplantação a dois de Orfeu para o Brasil, defendem, pode encontrar-se o movimento impulsionador do nascimento da bossa nova.
Integrada no Festival do Desassossego, uma organização da Casa Fernando Pessoa, a Aula-show Vinicius e Tom não deixará de contemplar igualmente duas canções compostas por Tom Jobim para poemas de Pessoa. Porque esta é, antes de mais, uma história de atracção entre música e poesia. A partir daí tudo é possível.