Dos Açores

Publica-se nos Açores, e com circulação quase restrita às ilhas, a obra de um dos mais exuberantes novos autores portugueses. Os Açores estão habituados a ter maravilhas exclusivas, são eventualmente o lugar mais impressionante do mundo, mas manter em segredo um escritor como João Pedro Porto é algo que precisamos de solucionar. Ao fim de três romances publicados, será uma tragédia permitirmos que continue tão invisível para o mundo mais amplo da literatura nacional.

Vamberto de Freitas, observador próximo, afirma que Porta Azul para Macau é da autoria “do melhor romancista da nova geração de escritores portugueses, sem dúvida alguma”. De facto, nascido em 1984, João Pedro Porto impressiona-me pela entrega a um declarado exercício de inteligência, pelos extensíssimos recursos vocabulares e pela aposta no inusitado, nunca parando diante de abismos, sempre capaz de aprofundar, atemorizar, descarnar gente e coisas para levar a palavra mais perto do que já quase não se pode dizer. No universo da ficção, estou convencido de que a literatura portuguesa não conseguia ninguém assim desde Vitorino Nemésio, e não será por acaso que estamos à conversa sobre gente daquelas ilhas.

O medo nenhum perante a língua, o despudor em retorcer as expressões, criando sempre um barroco qualquer que parece coisa antiga a ser misturada com um linguajar de hoje, um linguajar oral, colocam os textos do João Pedro Porto num patamar estranho de realidade. Sabemos que lemos um moço de 30 anos mas reverberam séculos nas suas construções, admiravelmente eruditas na junção do que é literário e do que poderia ser recolhido nas praças mais maduras: “Fala-me, agora, de ficção. Diz que eu a isso o obrigo. A viver em ficção. Dir-se-ia que se quer desprender de aústes de maroma. Das ferropeias com que se amarrou por não ter quem o amarrasse para lhe explicar os contornos do mundo. Será a maior incongruência de um navegante: querer saber os contornos do mundo e amar o infinito ao mesmo tempo.”

Desconfio, claro, também eu, de todas as pessoas que estudaram e estudam psicologia. Tenho medo deles como de videntes. Andam de volta do que normalmente não queremos que se saiba. Olham-nos perscrutando sinais e tirando muitas conclusões. Estão sempre convencidos de que somos isto e aquilo por razões perfeitamente identificáveis, e nós recusamos ser tão lineares. Queremos ser especiais, diferentes, inexplicáveis. O João Pedro Porto, psicólogo, apaixonado, ainda por cima, pela psicanálise, aparece como autor assim, um invasor absoluto, um denunciador. Ele é um narrador estruturado que aborda a personagem já seguro de que vai desmontá-la. E não está em causa que a ofenda por dar de barato as suas dores ou os seus desejos, muito ao contrário. As personagens são colocadas num mesmo patamar de dignidade, porque, para a literatura, como para a psicologia, o génio ou a loucura radicam em causas mesmamente ricas enquanto matéria de estudo.

O enfoque ironista, usado por quem efectivamente se coloca em posição de aceder às forças mas também às fraquezas de todas as ideias, torna o texto de João Pedro Porto uma espionagem. Olha-se de canto para tudo, do mais corriqueiro ao mais elevado, tudo é colocado em perigo, como se o mundo fosse sobretudo perigo e viver uma tropelia. O escritor é sempre um desconfiado. Tanto afirma como pondera, tem dúvidas e questiona, tudo lhe interessa por igual. A interrogação pode ser a única resposta possível.

João Pedro Porto é cénico, performático, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer. Não lhe falta talento e engenho para os mais intrincados objectos literários. Poucas vezes, ainda mais num autor tão jovem, sentimos que alguém, como ele, tem competência para a amplitude do quanto se propõe abarcar: “A passagem pelos umbrais é, geralmente, feita em silêncio. Depois, rebentam os verbos. Portas e silêncios são, pois, essenciais em igual medida. Havia ali, no entanto, uma porta que justificava maior silêncio do que todas as outras. Era azul. Anil. Como o abismo fulmíneo lá fora.”

Muitíssimo bem editado pela Letras Lavadas Edições, agorinha, em Maio de 2014.     

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