O belo adormecido
O olhar de Marcello Mastroianni apanhado pelo cartaz de Cannes 2014.
Em Lo Spettatore Addormentato, antologia das recensões teatrais de Ennio Flaiano, argumentista, escritor, crítico de cinema e de teatro (e colaborador de Fellini em La strada, La dolce vita ou 8½), toca-se a energia de uma geração e de um país, a Itália do pós-guerra, do boom económico, que fez irromper monstros de humanidade – os novos costumes e a nova (a)moralidade punham em crise o macho italiano. O cinema mainstream foi investido de uma energia tão temerária que hoje, em anos de um conformismo sem fim, faz figura de suicidária. A cada exemplar de “comédia à italiana”, por exemplo, ficamos basbaques perante a voracidade com que ali se abocanhava a realidade e a fantasia: “Como foi possível?”. Hoje é impossível. Temos medo. Adiante...
Escrevia Flaiano: “Gassman, Sordi, Totò, Manfredi, Tognazzi são os porta-vozes de uma certa inconsciência nacional, e mesmo de uma recusa de consciência em favor da sobrevivência. Um teatro privado de consciência não pode ser senão cómico. Rimo-nos dos vícios deles e dos seus defeitos, das suas derrotas e dos seus desastres, porque nos reconhecemos ali inteiramente e ao rirmo-nos disso acabamos por os ver sob uma luz não apenas aceitável como ainda elogiosa.”
Flaiano não menciona, nesse grupo de actores, o nome de Mastroianni... Marcello fez parte da troupe. Talvez o singularize uma durée, uma consciência – precisamente – da exterioridade. Aquilo que é necessário para (se) olhar. Isso tanto o levou para a suspensão melancólica como o atirou para a fantasia. Encantava-se com o "jouer” dos franceses, palavra que achava mais fulminante para descrever o que os actores fazem. É isso o que faz com Sophia Loren em Ontem, Hoje e Amanhã (1963) e Casamento à Italiana (1964), de Vittorio de Sica - Marcello e Sophia vivem as várias vidas de um casal, em histórias separadas no primeiro filme, de um fôlego no segundo (extraordinário!) em que personagens e actores estão à beira de morrer de exaustão e logo a seguir renascem para reinvestirem na violência, na infidelidade, no logro (este filme será projectado, no programa Cannes Classics de filmes restaurados, como homenagem a Sophia Loren, que estará presente).
Fellini gabava em Marcello o lado “feminino”, a doçura com que se deixava levar. Nos seus começos, na troupe de Visconti, cineasta/encenador que dizia que Mastroianni parecia um gorila vestido em guarda-roupa com plumas, sentia-se uma carta fora do baralho (pudera, ao lado de um tubarão como Vittorio Gassman...). Mas tirou partido, disse, da falta de preparação, em favor das personagens. Visconti sabia-o: essa exterioridade serviu O Estrangeiro (1967), a história do (anti-)herói de Camus que aceita a indiferença do universo, que se põe fora da moral (“– Está arrependido do crime?” “– Estou sobretudo aborrecido”). A dúvida, que faz de Mastroianni o actor com o “temperamento” mais contemporâneo dos da sua geração, levou-o a jogar na sabotagem da sua imagem de latin lover: a seguir à Doce Vida (1960) foi um impotente em O Belo António (Mauro Bolognini, 1960) e, em O Assassino (Elio Petri, 1961), as suspeitas de que é um assassino iam diminuindo à medida que se evidenciava a certeza sobre a preguiça moral da figura.
Numa representação de Morte de um Caixeiro Viajante, por Visconti, adormeceu em palco; distraiu-se a contar os andares do prédio que servia de cenário. Diz que na sua vida utilizou essa preguiça para afastar intrusos. Para o que aqui nos interessa, essa aparência de preguiça é uma forma de manter algo de essencial acordado: eu sei que vocês sabem que eu sei...