A superpotência continua a ser indispensável

O problema é a liderança americana ser ocupada pela “incerteza”. E isso quase ninguém quer.

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Na quinta-feira passada, assumiu o seu papel de líder “responsável”, defendendo o adiamento do “referendo” para decidir se a Ucrânia Oriental quer ser parte da Ucrânia. Já ninguém acreditou nas suas palavras fora das fronteiras da Rússia. As urnas de voto já estão preparadas, incluindo com os boletins lá dentro. Ninguém sabe nem quer saber como é que o referendo é organizado. Putin continua, imperturbável, a contar a sua história de ficção, que seria cómica se não fosse trágica para os ucranianos e para quem vier a seguir, e não constituísse uma ameaça séria à segurança europeia e internacional. Há duas maneiras de comer um salame, disse Joschka Fischer, o antigo chefe da diplomacia alemã, para descrever a táctica de Putin. Tentar comê-lo de uma só vez é impossível. Cortá-lo em rodelas finas para comer uma a uma, é uma maneira muito mais eficaz. “Hoje, o Kremlin está a aplicar a ‘táctica do salame’ à Ucrânia.” A Alemanha é um país fundamental neste braço-de ferro que Putin decidiu travar com o Ocidente. Por mais divisões que possa haver entre as suas elites políticas e económicas, Angela Merkel parece que compreendeu o que estava em causa. Não hesitou em considerar a política ucraniana da Rússia como uma ameaça à segurança europeia. Continua a dizer que a Europa tem de estar dispostas a subir a parada em matéria de sanções (a Alemanha é o país provavelmente mais afectado). Percebeu que a cooperação com os EUA é fundamental. Nem todos os países europeus alinham pelo mesmo diapasão. Mas, enquanto a Alemanha aguentar, Putin tem certamente um problema que não previu.

O Presidente russo apostou quase tudo na “fraqueza” dos EUA, cansados de garantir a segurança internacional, mas sobretudo na fraqueza europeia. São estes dois cálculos que lhe podem correr mal. Nem a América é tão fraca como muita gente a pinta, nem o mundo, incluindo a Europa, está preparado para aceitar o vazio de poder que a retracção americana causaria.

2. Se tentássemos fazer a lista dos problemas internacionais que Washington tem de enfrentar, correríamos o risco de ficar cansados logo a meio da tarefa. A tragédia humana na Síria e o rumo invernal das Primaveras Árabes, sobretudo no Egipto; o eterno impasse nas negociações do conflito israelo-palestiniano; o Irão e o risco de proliferação nuclear no Médio Oriente; a ascensão da China e a intranquilidade dos seus vizinhos, incluindo o Japão; os “buracos negros” na África, que alimentam o terrorismo islâmico; e, agora, a viragem estratégica da Rússia para uma política antiocidental e, consequentemente, revisionista da ordem internacional vigente. Se acrescentarmos as “resistências” das novas potências emergentes, incluindo as democráticas, ao poder norte-americano (mesmo que não estejam dispostas a alinhar com a Rússia), o quadro mundial que Obama tem de enfrentar, enquanto garante último da segurança internacional, aconselha alguma prudência nas críticas que lhe são feitas. Como dizia Hillary Clinton, quando chefiava o Departamento de Estado, toda a gente critica o poder americano mas toda a gente nos vem bater à porta sempre que há um problema sério.

3. A crítica mais frequente à política externa de Obama, sobretudo internamente, é o seu comportamento perante os aliados. O problema, dizem muitos analistas americanos, é que alguns desses aliados começam a desconfiar da sua determinação em defendê-los. O Japão não tem a certeza de poder contar com o apoio militar americano no caso de um conflito com a China (que pode começar com a anexação chinesa da pequena ilha habitada por tartarugas no Mar da China Oriental). Obama esteve em Tóquio recentemente para tentar dissipar essas dúvidas, incluindo a ilha das tartarugas. Fez o mesmo com os países que rodeiam a China, do Vietname (com quem ainda não tem um tratado de cooperação e que Pequim nem sempre trata da melhor maneira), à Coeria do Sul ou às Filipinas, que querem manter a presença americana na Ásia mas temem as represálias (incluindo económicas) de Pequim. A Arábia Saudita desconfia das negociações de paz com o Irão, olhando para a Síria como a montra da pouca vontade americana de pôr ordem no Médio Oriente. Finalmente, na Europa, o aliado entre os aliados, que dava mostras da alguma incomodidade com o “pivô” americano para a Ásia, as coisas são um pouco diferentes. Muita gente acredita que Putin deu uma enorme ajuda à relação transatlântica em todas as suas dimensões, quando se lembrou de invadir a Ucrânia. Ainda é cedo para sabermos qual é o fim desta história. Mas, apesar da Líbia ou do Mali, dois conflitos em que Obama pôs em prática a sua nova divisão de tarefas com a Europa em matéria de segurança regional, ou apesar da Síria, Putin conseguiu trazer de volta os EUA e voltou a dar aos dois lados do Atlântico uma razão forte para preservarem a sua aliança. A Europa acordou (ou, pelo menos, espera-se que sim) da sua “distracção” em relação a um mundo que lhe é cada vez menos favorável, depois de anos e anos a cortejar o Presidente russo. Para a Alemanha é uma questão fundamental, que definirá o seu lugar na Europa nos próximos tempos. Para os países de Leste que são hoje membros da NATO e da União Europeia, da Polónia à Roménia, passando pelos Bálticos, a presença americana voltou a ser uma questão vital. Resta saber se a compreensão do que está em causa é suficiente para unir as três capitais decisivas (Londres, Paris e Berlim) numa estratégia de médio prazo que fala sentido.

4. A segunda crítica feita a Obama nos EUA é o facto de ter excluído o uso da força para garantir o respeito pelas fronteiras da Ucrânia. Na sua recente visita à Europa, o Presidente limitou-se a invocar o Artigo 5.º da NATO (o que não é pouco) e a deslocar tropas para a Polónia e para os Bálticos. Hoje, as coisas são muito mais complicadas do que isso. “A nostalgia da Guerra Fria não é apenas um problema de Putin”, escreve ainda Fareed  Zakaria. É também um problema de parte das elites americanas. Ora, o mundo é muito diferente e muito mais complexo: “A China é um dos nossos maiores parceiros comerciais e o nosso potencial rival geopolítico”. A melhor estratégia de Obama é aquela que está a pôr em prática: isolar cada vez mais a Rússia na comunidade internacional e provar que a cooperação é muito mais rentável que o confronto. Até agora contam-se pelos dedos os países que reconheceram a Crimeia como parte da Rússia. E não consta que o uso da força durante os mandatos de Bush tenha dado grandes resultados.

Por mais dificuldades que atravesse, a América é ainda a potência insubstituível e sê-lo-á porventura durante mais algum tempo. Não é só o seu poder militar que ainda não tem equivalente à escala global. Não é apenas a capacidade de recuperação da sua economia, que já está a verificar-se, provando que o declínio ocidental e a ascensão dos emergentes não era um caminho linear. O seu poder, como diz a Economist, está também nas alianças que mantém pelo mundo fora, da Coreia do Sul, à Turquia, passando pela Indonésia e pela Alemanha. Além disso, como escreveu Edward Luce, o correspondente do Financial Times em Washington, o risco maior não é a América ser substituída pela China, o que vai levar ainda muito tempo, e muito menos pela Rússia. O problema é a liderança americana ser ocupada pela “incerteza”. E isso quase ninguém quer.

Jornalista

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