“O poeta oferece uma obra que desafia o jovem leitor/ouvinte para a contemplação do mundo e para a formulação de perguntas que fortalecem os elos entre crianças e adultos”, justificou o júri: os investigadores Rui Veloso e Leonor Riscado e, a representar a Fundação Bissaya Barreto, Lúcia Santos.
João Pedro Mésseder é o pseudónimo literário do escritor e professor universitário José António Gomes, que disse ao PÚBLICO ter ficado particularmente satisfeito por o prémio ter sido atribuído a uma obra de poesia, “género minoritário no universo do livro infantil”.
A sombra quieta
Era uma vez uma sombra
que não parava de estar quieta.
Quanto mais quieta estava
mais o pobre corpo
se mexia
e saltava, esbracejava, corria.
Tomado pelo medo,
o corpo acabou por fugir
daquele sinistro lugar.
Nunca mais ninguém o viu.
E a sombra?
Ainda lá está.
Ali, naquele lugar.
(Pág. 9)
Para o autor, há um “mito” em torno da poesia. “Os mediadores de leitura acham que a poesia é mais difícil para as crianças. Mas, na verdade, é é mais difícil para os mediadores, que não são leitores de poesia. Falta-lhes a prática desse tipo de leitura e recorrem mais ao álbum ilustrado”, diz. “Mas, quando a poesia chega às crianças através dos adultos que dela gostam, os resultados são surpreendentes”, acrescenta.
Dá como exemplo um trabalho feito na Escola EB, 2,3 de Arrifana com base no Pequeno Livro das Coisas, onde os objectos vivem “sentimentos, dores, alegrias”. Alunos do 2.º ciclo daquela escola, que tem ensino artístico integrado, criaram uma obra semelhante, mas transpondo o exercício de dar voz aos objectos para instrumentos musicais. Nasceu assim o Pequeno Livro da Música, que pode ser visto no blogue da biblioteca da escola, o 4L (http://quatroele.blogspot.pt/2014/05/pequeno-livro-das-coisas-vence-premio.html ).
Segundo João Pedro Mésseder, “esta técnica de se colocar as crianças na pele de um objecto resulta bem no 4.º, 5.º e 6.º ano, os alunos aderem com facilidade e entusiasmo”, diz o também autor de Versos com Reversos (ilustrações de Danuta Wojciechowska), O G É Um Gato Enroscado (ilustrado por Gémeo Luís), Breviário da Água e Breviário do Sol (com Francisco Duarte Mangas e ilustrados por Geraldo Valério) e De Que Cor É o Desejo? (ilustrações de José Miguel Ribeiro), entre outros títulos de poesia.
Borracha
Como um bombeiro
de apagar cinza em vez de fogos,
a borracha apaga, apaga.
E quanto mais apaga
mais a si mesma se apaga –
até ser nada.
(Pág. 18)
O facto de o Prémio Bissaya Barreto contemplar também a ilustração agrada bastante ao autor, “pela importância da articulação entre ambos”. Neste caso, uma articulação feliz. “Nunca pensei gostar de um livro cinzento”, conta divertido. “Mas esse fundo é que permite que as breves notas de cor (amarelo, vermelho e azul) surjam nas imagens como uma luz.” O despojamento e a atmosfera algo desoladora das ilustrações de Rachel Caiano fazem-lhe lembrar os filmes de Antonioni. “E adoro aqueles rostos”, diz.
Sobre a ilustração, considerou o júri que, “sendo sóbria, gera e reforça as sinergias necessárias à boa recepção dos poemas e à plenitude da fruição estética que o livro de literatura proporciona”.
Para a ilustradora, houve alguma inquietação inicial neste trabalho. “Depois de ler o texto, fiquei assustada. Por ser poesia”, contou ao PÚBLICO. “Andei às voltas, para ver como ia abordar os temas. Mas, depois, pensando nos objectos (que são a base do livro) e no facto de os consideramos insignificantes, ignorando muitas vezes a sua existência, resolvi fazer uma aproximação ao minúsculo, àquilo que não se vê”, explica.
Por não ser um texto narrativo, Rachel Caiano teve de escolher “uma linguagem que fosse comum a todas as ilustrações, para haver ligação, uniformidade e coerência no livro como um todo”. O “uso contido da cor” foi o elo encontrado, pondo “focos de iluminação em alguns pontos”.
Chama
Dança a chama, aquece, queima,
prende o olhar e o pensamento.
A chama extingue-se sempre,
mas o seu mistério nunca.
(Pág. 33)
A ilustradora diz ter procurado “uma estética transversal, não infantilizada e sem o excesso de colorido que é comum encontrar-se nos livros para crianças”. Um trabalho realizado “entre o digital e o analógico”, conta. E especifica: “Primeiro, fiz os desenhos a lápis de carvão – sem cor. De seguida, digitalizei os desenhos e também as cores e texturas (feitas a pastel de óleo). No computador, com o Photoshop, dei cor e textura aos desenhos e montei o texto.”
Rachel Caiano, artista plástica e ilustradora, tem 36 anos e também desenvolve projectos nas áreas de edição de objectos de autor, pintura e teatro. Como formação, diz ter passado “pelas artes de palco e pela Arquitectura”. Recebeu o Prémio Jovens Criadores 2007 na área da ilustração, o livro Os Dois Lados, que ilustrou, foi seleccionado para a exposição The White Ravens 2008, que esteve na Feira do Livro Infantil de Bolonha. E no ano seguinte, para a mesma exposição, viu mais um livro com imagens suas ser seleccionado, O Leão e o Coelho Saltitão.
Concorreram ao Prémio Bissaya Barreto 164 obras publicadas entre Janeiro de 2012 e Dezembro de 2013. O prémio já foi atribuído aos títulos A Bicicleta Que Tinha Bigodes, de Ondjaki, O Livro da Avó, de Luís Silva, e O Cavalinho de Pau do Menino Jesus, de Manuel António Pina, com ilustração de Inês do Carmo. Cinco mil euros é o valor que João Pedro Mésseder e Rachel Caiano vão partilhar.
Nuvem
Um branco silêncio desliza
no altíssimo azul de Maio.
(Pág. 42)