A minha pietà

O meu primeiro retrato da minha mãe e do meu irmão, que fiz em 1988. Oito anos depois, ele sofreria um acidente fatal Manuel Roberto
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O meu primeiro retrato da minha mãe e do meu irmão, que fiz em 1988. Oito anos depois, ele sofreria um acidente fatal Manuel Roberto

Fotografei muito pouco a minha mãe. Não é um lamento, porque os momentos em que não a vi pelo visor da câmara foram só nossos. Meus e dela. Muito bem vividos e conservados cá dentro.

Não pretendo que este Portfólio seja uma homenagem à minha mãe, até porque ela é só minha heroína e dos meus irmãos. Ela não foi nenhum modelo universal de mãe, apenas o meu útero. Maria Luísa, minha mãe, que a muito custo me deu à luz — segundo ela, agarrei-me a tudo quanto pude na sua barriga de nove meses para a não abandonar —, teve mais sete filhos. Apesar da minha renitência em acenar ao mundo em 1965, em Moçambique, ela acreditou sempre que eu sobreviveria aos trabalhos próprios de um primeiro parto, ainda por cima natural.

Revejo Maria, numa das suas grandes proezas que era conseguir alimentar oito crianças famintas, repartindo uma banana em oito partes iguais, nos idos tempos da fome que assolava Moçambique. Entre as canções com que nos embalava e a oitava parte da banana que devorávamos, já nos sentíamos satisfeitos. Ainda hoje, gosto de partilhar. E adoro banana! Ela perdeu o pai, a mãe, dois dos oito filhos e, num certo sentido, a sua própria vida.

Aos quatro anos, Maria tornou-se uma filha incógnita, quando o pai, ribatejano, jardineiro de profissão com predilecção por acácias das terras do Índico, morreu vítima de um acidente de viação. Não chegou a registá-la. Filha de Luísa Tinga e de pai incógnito natural da metrópole de então, Maria nasceu em 1943 e muito cedo se fez mulher. Perdeu um filho de 24 anos num estúpido acidente de viação, daqueles do género “Vou ali e já venho!” e nunca mais voltou. O meu irmão, que descansa em paz no conforto do colo da minha mãe, morreu sem ter sido assistido após o acidente. A dor desta perda envelheceu Maria de uma forma acelerada. De um dia para o outro, o cabelo passou de preto seda a grisalho. A minha irmã do meio, que deu a Maria o seu neto terceiro, morreu tinha a criança cinco anos. E Maria morreu de cancro no cérebro, em Maio de 2008, apesar de lhe ter sido diagnosticado um AVC e, provavelmente, ter sido tratada com quinino para a malária.

Nos conturbados tempos de 1978, senti a falta do abraço do meu pai por ocasião do meu 13.º aniversário. Na manhã seguinte, muito cedo, a mãe sentia-se cansada. Ajudei-a a levantar-se e a pentear-se. Estava determinada a forçar aquela audiência que nunca mais chegava com o então ministro do Interior para ajudar a libertar o meu pai. Íamos com frequência ao Comando Provincial da Polícia visitar a inocência do meu pai.

Ele estava detido sem acusação formal, segundo a minha mãe. Na altura, em Moçambique, não havia advogados, estávamos num PREC soviético. Confesso que não percebia nada do que se estava a passar.

Chovia torrencialmente no dia em que, ao aproximarmo-nos do calabouço onde o meu pai estava detido, um oficial de dia informa a minha mãe de que o meu pai estava no aeroporto de partida para o Niassa. Com oito filhos por criar — os mais novos, gémeos —, o marido, preso, ia ser deportado para a selva.

Ao ouvir a inesperada má notícia, senti-me sem asas. Mas Maria, pela sua determinação, inspirou-me logo a voar sem elas, pelo que me controlei e agradeci a informação do oficial de serviço. Imaginei logo um avião, rumo a Niassa a fintar uma tempestade tropical até pousar. Senti o meu pai embalar o meu pesadelo nessa noite.

Chovia, muito, muito, muito! Até esse dia gostava de chuva. Talvez porque adorava contemplar o olhar de felicidade da minha mãe quando nos via alegres, nus, confiantes e de peito aberto, a desafiar aquelas torrentes de água intermináveis, que mesmo assim não podiam connosco. A mãe acreditava em nós. Tínhamos prazer em chapinhar na raiva da chuva e, de esguelha, conseguíamos ver o brilho dos seus olhos à janela. Era a nossa liberdade com a cumplicidade maternal. O que mais poderíamos querer? Quanto mais gritávamos de alegria, mais expressivo era o seu rosto.

O meu pai estava a voar, sem mim, para um mundo desconhecido. Não conseguia dormir. Andava às voltas no andar de cima do beliche que partilhava com o meu irmão. Tanto rangeu que acordei a mãe. Ela tinha recebido no dia anterior uma notificação do Ministério do Interior para se apresentar no Comando às 6h da manhã. Tinham trabalho para ela e a proposta era simples: ia ser integrada no destacamento feminino e tinha de fazer formação paramilitar durante um mês para ser educadora de infância. Com oito filhos paridos, o regime considerou que tinha de aprender a lidar com crianças. Havia uma vaga de emprego para ela numa das creches do ministério. Era obrigatório fazer um treino militar e aprender a disparar uma Kalashnikov para ser integrada na polícia. Depois, seria destacada para uma das creches. A minha mãe pôs-se em sentido, agradeceu, mas disse logo que não ia aceitar a proposta porque nunca na sua vida iria rastejar fosse por que razão fosse. Mais tarde, percebi que na formação seria obrigada a rastejar para iludir o “inimigo”.

Recordo-me ainda de ter acordado sobressaltado numa manhã soalheira de 1980 com os gritos do senhor Langa, que alugara a nossa arrecadação para lá morar, a bramir que o carro estava a arder. Lá estava Maria, sempre bombeira, com uma bacia cheia de água a apagar o fogo que o meu irmão, que tinha acordado mais cedo e brincava na garagem, tinha involuntariamente ateado ao estimado Opel Capitan vermelho, cuidadosamente parqueado pelo meu pai pouco antes de ter sido detido e deportado.

Ela era assim. Apesar de ter sido formada pelas circunstâncias da vida, de Kalashnikov em punho para ser colocada como educadora de infância, era uma excelente tia de creche, até porque, com a competência de uma mãe de oito filhos e de mais alguns da vizinhança que ajudou a criar, tinha frequentado a melhor universidade do mundo.

A última vez que falei com ela foi por telefone, em Maio de 2008, eu no Porto (cheguei em 1990) e ela em Maputo. Apesar das várias tentativas para me identificar, e com a ajuda de uma irmã minha que do outro lado da linha lhe ia dando dicas acerca de quem eu era, infelizmente Maria, minha querida mãe, não me reconheceu. Senti-me tão triste como se uma chuva tropical tivesse desabado sobre mim. Foi o dia mais triste da minha vida. Tinha acabado de perder o meu útero.

Num dos muitos fotogramas que não fixei, após alguns anos de ausência, em 2006, surpreendi-a, já reformada, a tratar da sua machamba. Foi mais um daqueles momentos só nossos. Os seus olhos a chover de felicidade, vejo-os ainda hoje.     

Maria Luísa com o neto, na sua casa em Maputo, numa visita que fiz em 2006, dois anos antes de adoecer
Maria Luísa com o neto, na sua casa em Maputo, numa visita que fiz em 2006, dois anos antes de adoecer Manuel Roberto
Um dos meus sobrinhos em casa da minha mãe
Um dos meus sobrinhos em casa da minha mãe Manuel Roberto
Quando a minha irmã Helena morreu, o meu sobrinho tinha apenas cinco anos
Quando a minha irmã Helena morreu, o meu sobrinho tinha apenas cinco anos Manuel Roberto
Maria perdeu dois dos seus oito filhos e, num certo sentido, a sua própria vida
Maria perdeu dois dos seus oito filhos e, num certo sentido, a sua própria vida Manuel Roberto
A minha mãe, a minha irmã Helena e Isa, uma amiga
A minha mãe, a minha irmã Helena e Isa, uma amiga Manuel Roberto
Maria perdeu dois dos seus oito filhos e, num certo sentido, a sua própria vida
Maria perdeu dois dos seus oito filhos e, num certo sentido, a sua própria vida Manuel Roberto
A minha irmã Helena, com o filho
A minha irmã Helena, com o filho Manuel Roberto
Quando a minha irmã Helena morreu, o meu sobrinho tinha apenas cinco anos
Quando a minha irmã Helena morreu, o meu sobrinho tinha apenas cinco anos Manuel Roberto
Os meus pais, com as minhas irmãs mais novas
Os meus pais, com as minhas irmãs mais novas Manuel Roberto