França proíbe contactos com o chefe fora das horas de trabalho

E se, terminado o dia de trabalho, o trabalhador ficasse desobrigado de aceder aos emails e atender o telefonema ao chefe? Utopia? Nem por isso. Em França, sindicatos e patrões do sector da tecnologia, engenharia e consultoria assinaram, no início deste mês, um acordo que reconhece o direito do trabalhador a ficar offline.

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O direito à "desconexão" abrange cerca de 250 mil trabalhadores entre consultores, informáticos e engenheiros Pedro Elias

Traduzindo: os trabalhadores passam a ter de desligar os seus telefones de serviço entre as seis da tarde e as nove da manhã do dia seguinte. Durante o mesmo período, devem ignorar qualquer mensagem de correio electrónico relacionada com trabalho, não podendo ser sancionados pelas respectivas empresas.

Só ao fim de seis meses de negociações é que as federações patronais das empresas francesas de engenharia, informática, consultoria e estudos de mercado (Syntec e Cinov) se puseram de acordo com os principais sindicatos do sector: a Confederação Francesa Democrática do Trabalho e a Confederação Francesa de Quadros Directivos. Juntos concordaram somar ao famoso acordo de 1999, que fixou as 35 horas de trabalho semanal, uma cláusula que estipula o direito à desconexão das ferramentas de comunicação à distância. O objectivo é claro: garantir o respeito pelos períodos mínimos de descanso dos trabalhadores previstos na legislação.

Por enquanto, o acordo vale como mera declaração de princípios. O documento terá de ser aprovado pelo Governo antes de ser publicado no Journal Officiel (equivalente ao Diário da República francês), mas tem desde já o mérito de ter obrigado os empregadores a encarar o problema do prolongamento informal das jornadas de trabalho, comprometendo-as com o objectivo de contactar os funcionários fora das horas de trabalho apenas em situações de emergência.

O direito à “desconexão”, segundo o jornal francês Les Echos, abrange cerca de 250 mil trabalhadores, entre consultores, informáticos e engenheiros. Citado pelo Les Echos, o sindicalista da CFE-CGC, Michel De la Force, considerou que já era tempo de regular o “tempo digital de trabalho” e assim evitar a exploração e inclusivamente a auto-exploração do trabalhador fora do local de trabalho e permitir que este se desligue e esqueça o trabalho por algumas horas.

Problema de saúde pública
Por cá, não se perspectiva que a medida venha a fazer escola. E não é que não fosse necessária. Afinal, calcula-se que 15% dos trabalhadores portugueses estejam num estado de esgotamento, segundo o estudo que a Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional apresentou, no passado dia 12 de Março, na Comissão Parlamentar da Saúde. Para a associação, trata-se de “um problema de saúde pública”, que aumentou substancialmente entre 2008 e 2013.

Se, no ano passado, 15% dos trabalhadores evidenciavam sinais de esgotamento, em 2008 apenas 9% estavam nessa situação. “O máximo aceitável seria 9% a 10%”, sublinhou então ao PÚBLICO João Paulo Pereira, presidente da associação, para quem é “assustadora” a degradação dos indicadores de bem-estar no mundo laboral que ficou patente nesta avaliação que abrangeu mais de 37 mil trabalhadores dos sectores público e privado.

Por outro lado, a percentagem de inquiridos que afirmavam estar a enfrentar situações de stress nas suas empresas quase duplicou neste período, passando de 36%, em 2008, para 62%, em 2013. “As disfuncionalidades emocionais estão a aumentar drasticamente”, ainda segundo João Paulo Pereira.

Outro indicador do mal-estar evidenciado pelos 38.719 trabalhadores inquiridos ficou patente na vontade de mudar de emprego no horizonte dos cinco anos seguintes (o chamado turnover, na gíria da saúde ocupacional). Se, em 2008, cerca de um terço dos trabalhadores manifestavam esta intenção, em 2013 eram já 78% os que pretendiam fazê-lo. A degradação das condições de trabalho nos últimos anos reflectiu-se ainda noutro indicador: 83% dos inquiridos estavam “em risco de exaustão”.

Para o presidente da APPSO, este mal-estar no mundo do trabalho não deve ser encarado como “uma fatalidade nacional”. Mas, alterar o cenário, exige uma mudança de paradigma, uma espécie de “25 de Abril nesta área”. Classificado já como uma enfermidade do século XXI, o esgotamento profissional ganha contornos epidémicos em todo o mundo desenvolvido. Depressão e ansiedade generalizada são os principais sintomas.

Evitar o burnout de trabalhadores
De regresso a França, o semanário L’Express noticiava há algumas semanas que o burnout afecta um em cada cinco trabalhadores. E os franceses são particularmente sensíveis ao tema dos suicídios por motivos laborais. No primeiro trimestre deste ano, suicidaram-se cerca de uma dezena de funcionários da Orange (antiga France Télécom). O alarme social surgiu entre 2006 e 2007, aquando de uma série de suicídios entre os assalariados da Renault que começaram pouco depois de o presidente da corporação, Carlos Ghosn, ter anunciado o propósito de lançar 27 novos modelos automóveis em apenas três anos. Na altura, os 12 mil trabalhadores da fábrica da Renault em Guyancourt, nos arredores de Paris, ficaram sob gestão “quase militar”, como denunciaram então os sindicatos, de dedo apontado aos horários de trabalho desregulados que se praticavam para satisfazer os intentos dos administradores. Os alertas dos sindicatos não sensibilizaram Ghosn. Mas os suicídios entre os trabalhadores (cinco em dois anos) sim. Também porque, nas cartas de despedida, mais do que um aludiu a problemas de stress e sobrecarga no trabalho.

E, de então para cá, muitas das grandes empresas têm procurado evitar o burnout dos seus trabalhadores. Algumas proibiram reuniões a desoras. Noutras, as luzes começaram a apagar-se automaticamente a determinada hora para evitar o prolongamento da jornada de trabalho. E algumas (poucas) tinham já adoptado normas de conduta internas que proibiam os funcionários de responder a mensagens profissionais fora das horas de trabalho. A força dos sindicatos franceses tinha já ficado demonstrada quando estes processaram a Apple e conseguiram que os tribunais sentenciassem o pagamento de indemnizações de 10 mil euros aos funcionários que tinham sido obrigados a trabalhar durante a noite nas lojas daquela multinacional.

Reduzir horas noutros países
Fora de França, a Volkswagen alemã decidiu em 2011 começar a “apagar” os seus servidores informáticos entre as 18h15 e as 7h00. Pouco depois, a Deutsche Telekom copiou a ideia. Há dias, a cidade sueca de Gotemburgo foi notícia nos jornais do mundo inteiro por reduzir o horário de trabalho de sete para seis horas diárias, sem alterar o salário. Na fase inicial, a experiência está circunscrita a um grupo de funcionários públicos. O diário espanhol El País citava o autarca da cidade, Mats Pilhem, para quem “ao fim de seis horas, os trabalhadores ficam cansados e produzem menos” e que disse esperar que trabalhadores mais satisfeitos produzam mais e faltem menos.

O britânico The Telegraph pediu a Anna Coote, directora do Social Policy at the New Economics Foundation, que comentasse a medida e esta aplaudiu de pé. “Menos horas de trabalho criam uma força de trabalho mais comprometida e estável”, defendeu, apontando outras experiências que mostram que “é possível poupar dinheiro reduzindo as horas de trabalho”. À luz do mesmo princípio, no Utah, Estados Unidos da América, os funcionários públicos têm vindo a beneficiar de fins-de-semana de três dias.

Apesar de terem sido pioneiros na criação da semana das 35 horas, os franceses não parecem ser os mais zelosos cumpridores da lei. Entre os profissionais liberais e os quadros das empresas, a semana de trabalho chega a atingir as 55 horas para satisfazer as exigências dos chefes, conforme noticiava ainda o L’Express. Uma prática que, pelo menos entre os consultores, informáticos e engenheiros franceses, parece estar agora em vias de extinção.

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