O que é que a Teoria do Big Bang tem a ver com os Marretas?
O regresso dos bonecos criados por Jim Henson não podia surgir em melhor altura – quando a comédia televisiva (americana, mas não só) está a ser feita por aqueles que cresceram com Cocas, Miss Piggy e o urso Fozzie.
Essa é a primeira geração que cresceu, nos anos 1960 e 1970, depois da “revolução juvenil” do pós-II Guerra Mundial e da ascensão do rock'n'roll, num momento em que o mundo estava a mudar. A mesma geração que, hoje, lidera impérios como a Disney, proprietária dos direitos das personagens desde 2004 e responsável pela sua “ressurreição” no cinema em 2011, com resultados comerciais suficientes para relançar o franchise. O segundo filme da “nova vida”, Marretas Procuram-se, chegou esta semana às salas portuguesas.
Mas é curioso verificar como tudo o que tem sido escrito sobre os “novos” Marretas tem-no sido quase sempre por quem conhecia os “velhos” Marretas da série televisiva produzida entre 1976 e 1981, mais do que por aqueles que só mais tarde foram expostos às personagens. Estar-se-á a “mexer” no que são, de algum modo, “textos sagrados” para toda uma geração de espectadores, que vêem a individualidade e a irreverência dos bonecos “absorvida” pela máquina de merchandising da Disney?
Henson não era um inocente naïf; o seu “império” nunca funcionou alheado do mercado que o rodeava, mas baseava-se num idealismo universalista nascido precisamente desse elogio do não-alinhado. “Jim Henson era aquilo que todas as crianças gostariam de ser – um miúdo crescido com poder no mundo adulto,” diz Elizabeth Stevens ao PÚBLICO, numa entusiástica conversa online. “Alguém que passa os dias a criar magia, a transformar ideias em realidade, a trabalhar com outras pessoas criativas sem que a realidade, o dinheiro, ou os contabilistas o travassem.”
Tal como a Rua Sésamo original (estreada em 1969) e, mais tarde, os Fraggles, o Muppet Show conseguia agradar aos miúdos e aos adultos sem excluir nenhum deles. Estes “freaks não alinhados” não se conseguiam reduzir a uma única dimensão: o seu humor simultaneamente optimista e absurdista dirigia-se não tanto aos adultos ou às crianças como à criança que há dentro de cada adulto.
Foi nessa lógica que um trio de fãs vindos da comédia televisivoa - James Bobin, director de Ali G e Flight of the Conchords, Jason Segel, da série Foi Assim que Aconteceu, e Nicholas Stoller - assumiu o comando das personagens em 2011. Para surpresa de muitos, a Disney deu “carta branca” aos três, mesmo com acusações dos mais puristas – e inclusive de veteranos ligados à série televisiva – de que se avizinharia uma traição aos ideais Hensonianos. Não foi o caso - “os Marretas continuaram 'marretas'”, nas palavras de Stevens - , e a Disney voltou a deixar mãos livres à mesma equipa para a sequela. Que traz Ricky Gervais, um dos comediantes mais incorrectos da actualidade, e Tina Fey, a criadora de Rockefeller 30, como vilã russa apaixonada pela Broadway, para não falar de uma multidão de cameos e gagues que registam fora do radar dos espectadores mais pequenos – confirmando como os Marretas não são exactamente coisa para miúdos.
Gervais e Fey são apenas dois dos muitos comediantes contemporâneos que, muito antes de embarcarem no novo filme, já admitiam a dívida criativa às personagens. A anarquia oblíqua dos Marretas sempre resultou porque se tratava de personagens desalinhadas que viam “o mundo ao contrário” sem nunca perderem o norte do “mundo real”. E essa combinação de optimismo e desajuste, de celebração da diferença, vai de encontro à actual “era de ouro” da comédia televisiva – a de séries como Uma Família Muito Moderna (da qual um dos actores, Ty Burrell, faz parte do elenco de Marretas Procuram-se), Foi Assim que Aconteceu ou, sobretudo, A Teoria do Big Bang (como não ver no obsessivo-compulsivo Sheldon uma espécie de Marreta de carne e osso?). São séries que escondem por trás do humor absurdista e meta-ficcional uma inocência e uma doçura que pode dever muito aos bonecos.
“É difícil ser muito preciso" quanto à influência exacta dos Marretas nas séries actuais, explica Stevens, “porque quase toda a gente que faz hoje televisão viu os Marretas. E é preciso não esquecer que Jim Henson contratou veteranos da comédia televisiva para escrever o programa. A um certo nível, os Marretas limitavam-se a repetir estruturas e sketches herdados de outras séries televisivas ou do vaudeville teatral.”
É essa dimensão televisiva que pode também explicar a dificuldade dos Marretas conseguirem o mesmo tipo de impacto no cinema que tiveram na televisão (afinal, Marretas Procuram-se já é o oitavo filme das personagens). Continua a haver um lado artesanal, “analógico”, que se dá mal no grande ecrã, devido também às especificidades de manipulação dos bonecos. E o elogio da diferença das personagens parece dar-se mal com a dimensão do marketing, que vende os Marretas pela mesma lógica de massas que serve para divulgar os super-heróis da Marvel ou as animações da Disney. Para Stevens, “a Disney sempre achou que os Marretas eram personagens eternas como o rato Mickey ou Winnie the Pooh – que todas as gerações gostariam deles igualmente. Mas a verdade é que as gerações que vieram a seguir, com algumas excepções, não sentem o mesmo pelos Marretas que o público que cresceu com eles.”
O que, conjugado com os resultados abaixo das expectativas que Marretas Procuram-se está a obter nos EUA, pode fazer recear pelo futuro das personagens. Elizabeth Stevens, contudo, não tem a mínima dúvida que os Marretas vão continuar por aí. “O Cocas é uma figura imediatamente reconhecível, e há uma ligação emocional muito forte que faz com que muita gente mostre interesse sempre que houver algo de novo. Penso que eles são como o Doctor Who: conseguem aguentar novas regenerações. E acho que as gerações mais novas estão a aprender a gostar dos Marretas. Um dos meus alunos disse-me que muitos colegas viram o filme de 2011.” E gostaram? “Não sei. Mas não gostaram de saber que há quem ache que os Marretas lhes passam ao lado!”