Uma fenda no coração de África
Cabe à comunidade internacional provar, através de acções, que o povo da República Centro-Africana é de facto parte da nossa humanidade comum e do nosso futuro partilhado.
Acabo de voltar de uma visita ao país para ver a situação em primeira mão. Dizer que é uma situação desesperada é um eufemismo.
Mais de metade da população do país, que é do tamanho do Texas, precisa de assistência para sobreviver. Um em cada quatro centro-africanos tem sido arrancado da sua casa. Nos acampamentos improvisados que visitei no aeroporto fora da cidade capital Bangui, cerca de 500 pessoas têm de partilhar uma casa de banho. Condições que só tendem a piorar com o início da estação das chuvas.
"Quem aceitaria viver aqui?", gritou uma mulher dirigindo-se a mim. "Mas estavámos a arriscar as nossas vidas se ficássemos lá onde vivíamos."
A maioria da comunidade muçulmana fugiu do país, de uma onda brutal de violência sectária que já custou inocentes em todas as partes do conflito. Crimes atrozes continuam a ser cometidos. O sistema de justiça desintegrou-se. A limpeza étnico-religiosa é uma realidade. Comunidades inteiras foram desmanteladas.
Apesar das muitas privações, o bem de que a República Centro-Africana mais carece é tempo. A missão de paz vai demorar pelo menos seis meses a estabelecer e funcionar em pleno. Entretanto, as pessoas do país estão presas numa luta diária pela sobrevivência.
Eu visitei a República Centro-Africana no caminho para a cerimónia de comemoração do 20.º aniversário do genocídio do Ruanda. Nesse país, expressei a minha profunda tristeza pela inacção da comunidade internacional durante a hora de maior necessidade do país.
Mas o que dizer das crises que acontecem sob a nossa guarda?
Será que a comunidade internacional vai agir agora, em vez de pedir desculpas daqui a 20 anos por não ter feito o que era necessário quando tivemos a oportunidade? Será que os líderes nacionais vão ouvir as lições do passado e evitar outro Ruanda no nosso tempo?
No centro de um dos bairros mais atingidos de Bangui, passámos, quarteirão após quarteirão, por carcaças de lojas e casas. Passámos por um mar de camiões cheios muito acima da capacidade com potes, panelas, jarros de água, os últimos pertences de uma população em fuga.
Mulheres e homens partilharam histórias angustiantes de violência sexual, rapto e ameaças constantes às suas vidas. Agora, eles são como prisioneiros desesperados para fugir. Eles contaram-me como as escolas, os hospitais, mesmo os cemitérios estão fora dos seus limites. Como uma pessoa lamentou: "Nós nem sequer podemos ajudar os nossos mortos."
Agora é a hora de ajudar os vivos. Isso requer uma acção acelerada em três frentes.
Primeiro, a segurança. A União Africana e as forças francesas estão a trabalhar afincadamente para restaurar a paz e a segurança. As forças da União Europeia, que começaram a chegar ao terreno esta semana, são uma adição bem-vinda. Mas eles precisam de reforços para conter a violência e proteger os civis. Tenho apelado ao envio imediato de mais de três mil soldados e polícias que iriam lançar as bases para a futura missão de manutenção de paz das Nações Unidas.
Em segundo lugar, o Governo necessita de ajuda para as coisas mais básicas — incluindo garantir que polícias, juízes e guardas prisionais voltem ao trabalho. A chefe de Estado da Transição, Catherine Samba-Panza, está empenhada em restaurar a autoridade do Estado. Mas sem qualquer orçamento, as suas capacidades estão muito limitadas. O financiamento para a ajuda humanitária também está aquém, com apenas 20% das promessas recebidas.
Em terceiro lugar, uma vez que a nova operação de manutenção da paz pode apenas ser parte da solução, estabelecer um processo político inclusivo é crucial. Os líderes comunitários e religiosos são fundamentais para promover a tolerância, a não violência e o diálogo. A responsabilização por crimes horrendos é central para a paz. As pessoas da República Centro-Africana devem ver que o Estado de direito importa, independentemente de quem sejam ou em que acreditem, quer sejam líderes quer indivíduos combatentes.
Estes são elementos essenciais para a reconciliação e para garantir que os refugiados e os deslocados internos podem voltar para suas casas e comunidades. A alternativa é uma separação de facto que iria lançar as sementes do conflito e da instabilidade no coração frágil de África por muitos anos, talvez gerações.
Durante a minha visita, uma líder de um grupo de paz das mulheres disse: "O nosso tecido social está em frangalhos. Os laços das nossas comunidades quebraram-se. Não há nada para nos ligar. Mas você representa o mundo e está aqui. Agora sabemos que fazemos parte do mundo."
Apreciei a sua confiança, mas eu sei que precisamos de acção para a merecer.
A República Centro-Africana é abençoada com recursos abundantes e terra fértil. Durante gerações, tem sido uma encruzilhada de culturas onde diferentes comunidades viveram pacificamente.
Cabe à comunidade internacional provar, através de acções, que o povo da República Centro-Africana é de facto parte da nossa humanidade comum e do nosso futuro partilhado. Um pouco de ajuda terá grandes resultados. Temos a responsabilidade colectiva para agir agora, em vez de expressar arrependimento vinte anos depois.
Secretário-geral da Organização das Nações Unidas