Meia-hora de conversa com Joshua Oppenheimer está quase a acabar quando o realizador americano explica o modo como vê o seu trabalho. “A primeira coisa que a maior parte dos documentaristas faz é fingir que a sua câmara é uma janela transparente sobre a realidade. Simulam uma realidade na qual fingem que a câmara não está presente ou que não tem impacto. Isso é uma ficção, e uma ficção arbitrária. Para mim, constitui uma enorme oportunidade perdida para usar a câmara como microscópio que revela a natureza da realidade, a natureza do que somos. Sempre que se aponta uma câmara a alguém, essa pessoa começa a encenar-se – e a câmara do cinema de não-ficção torna-se, naturalmente, num prisma que revela as ficções que constituem a sua realidade.”
É por isso que, em relação a O Acto de Matar, Joshua Oppenheimer, seu co-autor com a inglesa Christine Cynn e com anónimos indonésios, fala menos de “documentário” e prefere-lhe “cinema de não-ficção”. É obra que abala o espectador de um modo que poucos filmes conseguem, e que, desde a sua estreia em finais de 2012, tem vindo a causar sensação e controvérsia por todo o mundo, sendo nomeado filme do ano em 2013 por vários críticos internacionais (com a insuspeita revista britânica Sight & Sound à cabeça). O embalo do filme – que, mostrado no IndieLisboa de 2013, chega agora às salas portuguesas na “versão curta” de 120 minutos, antes de uma edição em DVD na “versão longa” de 160 - levou à sua improvável nomeação para o Óscar de Melhor Documentário.
O Acto de Matar não levou a estatueta. Talvez por pegar de caras um assunto tabu – o genocídio cometido na região indonésia do norte de Sumatra, em 1965 e 1966, por “esquadrões da morte” a mando do regime de Suharto, sobre todos aqueles que se opunham ao novo governo, comunistas, activistas, sindicalistas, minorias étnicas. Ou por o fazer contando a história, ao contrário do que é habitual, do lado dos vencedores – oferecendo aos próprios gangsters que cometeram o genocídio a possibilidade de encenar os seus actos como se estivessem no cinema. Como se fossem heróis dos filmes americanos que devoravam nos cinemas de Medan e que influenciavam o modo como se viam.
“O cinema é o grande contador de histórias da modernidade,” explica-nos Oppenheimer, 39 anos, por Skype, de Copenhaga, sua base de trabalho. “O cinema de Hollywood é uma máquina muito poderosa que cria o nosso amor próprio, a compreensão de quem somos, do nosso passado, do que significa fazer parte de uma nação, de uma família, ter sucesso, falhar, sentirmo-nos realizados, encontrar o amor... E vemos aqui este caso extremo de assassinos que usam o cinema para se distanciar do acto de matar, que se perdem na sua identificação intoxicada com a vedeta que acabaram de admirar no cinema antes de irem matar pessoas do outro lado da rua.”
Oppenheimer tem trabalhado na Indonésia ao longo da última década e encontrou pela primeira vez o genocídio através do seu trabalho com camponeses locais para o documentário de 2003 The Globalization Tapes. Decidido a contar as suas histórias, deu por si confrontado com a impossibilidade de filmar os sobreviventes, intimidados pela contínua presença no poder dos responsáveis dos acontecimentos de há 40 anos atrás. Ora, se os sobreviventes se recusavam a falar por terem medo de desafiar o poder, então filmar-se-iam os executantes da política de extermínio, que continuavam às claras, celebrados pelo seu papel nos massacres. Eles acederam entusiasmadamente, e um deles, Anwar Congo, torna-se no “anfitrião” desta viagem.
Os seus desejos de contar as suas histórias através dos tradicionais géneros hollywoodianos – musicais, westerns, policiais, filmes de guerra, filmes de terror – tornam-se no centro de um filme “na corda bamba”. Que recusa o aparente distanciamento para atirar o espectador para a complexidade moral de um pesadelo que só agora se começa a dissipar. E que não deixou de afectar aqueles que o registaram – toda a equipa indonésia do filme esconde-se atrás do anonimato para evitar represálias, Oppenheimer fala de se sentir “contaminado” pelos horrores que ia registando. Ponto de partida para meia hora de conversa em discurso directo onde se percebe claramente como a experiência de contar O Acto de Matar é indelével – para quem o fez como para quem o vê.
Entre pesquisa, rodagem e montagem, O Acto de Matar corresponde a quase uma década de trabalho. Como foi viver tanto tempo com estas histórias?
Ao princípio, tentei distanciar-me o mais possível dos perpetradores, emocionalmente. Lembro-me que o primeiro que entrevistei era meu vizinho numa aldeia onde eu estava há pouco tempo. Depois de o filmar a mostrar-me, em frente à neta, como tinha morto tantas pessoas, atravessei a rua para ir para casa, completamente abalado. A esposa dele veio 20 minutos depois bater-me à porta com um prato de banana frita. Aceitei o presente, despedi-me educadamente e deitei fora as bananas. Como se não quisesse comer nada daquela cozinha. Compreendi mais tarde que estava apenas a tentar convencer-me que não tinha nada a ver com estas pessoas. E reconheci também que, para compreender como é que os seres humanos fazem estas coisas uns aos outros, precisava de procurar alguma empatia, de imaginar o que seria ser esta pessoa. Para poder compreender porque fez o que fez. Percebi que tinha de me abrir a eles, o que foi evidentemente doloroso porque isso implica tornar-nos vulneráveis...O que não deve ter facilitado...
Lembro-me de chegar a casa à noite e de me sentir terrivelmente mal, quase contaminado, cúmplice dos horrores que tinham acabado de se desenrolar. Foram oito meses de pesadelos. E depois acabou por surgir uma espécie de aceitação que me tornou possível viver com isto. Não penso que, ao terminar o filme, tenha de algum modo deixado isto para trás. A nossa prosperidade no Ocidente é construída sobre este tipo de violência e de sofrimento no hemisfério Sul. Quando compramos numa loja um creme para a pele feito com óleo de palma, existe no preço que pagamos uma pequena percentagem que vai para gente como o Anwar e os amigos, cujo trabalho é ameaçar, intimidar, manter as pessoas com medo. Todos o sabemos. Sinto que não é possível fugir a esta violência. As pessoas dizem que têm violência como esta na história distante dos seus países, mas eu digo-lhes que não, temo-la agora e aqui, e estamos a vivê-la – são os alicerces da nossa prosperidade e do nosso conforto.
Precisamente por ter sido uma rodagem tão exigente, foi catártico chegar ao fim?
É tentador dizê-lo... Esperamos que os filmes terminem com uma catarse, uma redenção. Catarse vem da palavra grega para libertação, mas não há libertação para o Anwar. Ele pode estar a tentar vomitar cá para fora os fantasmas do passado que o assombram, mas descobre que não consegue expulsar nada porque aquilo que o assombra é o seu passado. E nós somos os nossos passados. Ele está marcado pelo que fez e não é possível libertar-se disso. O Anwar pode ter, enquanto ser humano, a coragem de reconhecer consistentemente que o que fez está errado, o que seria talvez a pré-condição de uma redenção genuína. Mas não acredito nisso. Perdeu a sua arrogância, perdeu a sua bravata, mas devido ao impacto que o filme está a ter já nenhum dos perpetradores se gaba dos seus crimes. Agora, sim, penso que é uma catarse no sentido em que o Anwar, depois de ter visto o filme pela primeira vez, ficou em lágrimas e acabou por dizer que o filme “mostra como é ser eu.” Depois de outra longa pausa, disse que estava aliviado, e o alívio e a catarse estão relacionados.
E para si?
Foi também alívio que senti quando o filme estreou. Tinha estado a conter esta experiência ao longo de nove anos, quase uma década, se incluir toda a pesquisa e o trabalho anterior nas plantações com os sobreviventes. É tentador esperar que os documentários de longa metragem sejam uma espécie de jornalismo de opinião, vê-los como uma reportagem sobre o que aconteceu durante a rodagem. Mas não é. A primeira parte da montagem consiste em escavar o significado do material, em revelar as suas camadas, e é na segunda parte que o filme começa a ganhar forma, como uma tradução da experiência do filme para o público. E isso é catártico, porque sentimos que existe finalmente uma comunidade à nossa volta que viu o filme e que compreende algo do que vivemos.
O Acto de Matar tem muito a ver com outros trabalhos sobre genocídios, como Claude Lanzmann sobre o Holocausto e Rithy Panh sobre o regime Khmer Vermelho.
Acho que nós os três falamos do momento contemporâneo em que estamos a filmar. A falta de material de arquivo em Shoah [Lanzmann, 1985], como em O Acto de Matar ou S21 [Panh, 2003], significa que os três filmes falam de certo modo sobre o momento em que estão a ser filmados. Mas penso que há uma distinção profunda a fazer: os sujeitos de O Acto de Matar não foram forçados a admitir que o que fizeram estava errado. E por isso não pedem desculpa nem o negam. Penso que isso é uma diferença fundamental. Os homens que eu estava a filmar não estavam a prestar um testemunho; estavam mais próximos da performance. E a performance é sempre pensada em função de um público. A grande questão era quem era o público que eles imaginavam, como é que eles queriam ser vistos pelos sobreviventes, pelos vizinhos, pelos netos. E depois compreendi que, se conseguisse mostrar o modo como eles querem ser vistos, o público seria no mínimo capaz de inferir como eles se vêem a si próprios na realidade.
Daí a presença muito forte dos filmes americanos que influenciaram como eles se viam...
A performance sempre fez parte do acto de matar para Anwar. É como se ele estivesse, através das reconstituições, através das dramatizações cada vez mais grotescas e surreais das coisas que fez, a tentar fugir do horror, ou das memórias que ainda o assombram. Mas, como o que está a servir de combustível para cada recriação cinemática é a sua necessidade de fugir, estas recriações cinemáticas tornam-se num prisma através do qual ele vê o horror do que fez. E o público vê uma sucessão, um caleidoscópio de mentiras, que permitiram a este homem e a esta sociedade normalizar não apenas os massacres mas também toda uma corrupção e violência que persiste até hoje. É em grande parte um filme sobre alguém que não acredita nas suas próprias mentiras; sobre um homem que repete desesperadamente mentiras enquanto se agarra à esperança de banir a verdade que conhece.
Nesse sentido, logo desde o princípio penso ter compreendido que O Acto de Matar não era um trabalho de recuperação histórica ou de testemunho de um trauma contemporâneo, mas antes uma intervenção. Os próprios sobreviventes, ao verem pela primeira vez as imagens, diziam-me: “meu Deus, estás a mostrar algo de muito importante, continua a filmar para que quem o vir seja forçado a admitir tudo o que está podre na Indonésia contemporânea”. A grande diferença, numa palavra, entre O Acto de Matar e o trabalho do Rithy e do Claude Lanzmann é a impunidade. E a impunidade é algo que os perpetradores necessitam de afirmar uma e outra vez. Eles precisam de a representar, e O Acto de Matar é uma espécie de análise, e também de subversão, dessas representações.
Esperava que o filme se tornasse num fenómeno?
Não. Pegue no exemplo das nomeações para os Óscares: disse a mim mesmo que nem acreditava que tínhamos sido nomeados, e que era impossível ganharmos. Mas decidimos usar a janela que a nomeação nos dava para amplificar ao máximo o impacto do filme. Mostrámo-lo a políticos em Washington, exigindo que os EUA assumissem o seu papel no genocídio, trabalhámos com activistas dos direitos humanos na Indonésia – fizemos tudo para tirar o filme das páginas da cultura. E resultou. O governo indonésio veio dizer finalmente que sabia que o que acontecera em 1965 era errado, e que precisava de haver uma reconciliação, mas que ela viria a seu devido tempo. Quando diz que o filme se tornou num fenómeno, tenho alguma consciência disso, e sei que teve mais atenção do que eu alguma vez esperava. E sim, estou surpreendido.
Mas também por causa disso as expectativas vão ser muito grandes para o próximo filme.
Não penso sequer nisso. Não faço filmes para ganhar prémios ou ser aplaudido. Nunca teria pensado em passar uma década a trabalhar num filme em que quase ninguém acreditava se me preocupasse com essas coisas. Tenho demasiadas coisas para querer fazer e tempo insuficiente para as fazer...