À flor da pele

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Mako Yagyu, Hélio Morais, Joaquim Albergaria, Fábio Jevelim: os PAUS Gwendolyn Van Der Velden

É difícil esquecermo-nos deles em concerto. À frente, dispostas à boca do palco, duas baterias, ligadas pelo bombo. Hélio Morais bate de forma contundente, mas sempre elegante, nos tambores, mostrando grande disponibilidade física. À sua frente, Joaquim Albergaria, longas barbas, nunca repete a mesma percussão, com os pratos a receberem a força bruta dos seus impulsos. Ligeiramente atrás, o baixista e por vezes também teclista Makoto Yagyu, cabelo comprido escondendo ligeiramente o rosto, acentuando o balanço do colectivo com muito nervo, e o teclista, e por vezes também guitarrista, Fábio Jevelim, propondo texturas psicadélicas. 

A massa sonora é bruta. Os ritmos disparam, galopantes. Mas também há espaço para inesperados recantos melódicos e por vezes fazem-se ouvir vozes solitárias, ou em uníssono, dizendo palavras que ficam a pairar nos ouvidos. Não é tanto o que é dito, é a forma obsessiva como é dito. Há qualquer coisa de celebração primordial nesta música, como se terra, água, fogo e ar tivessem sido convocados para um cerimonial inesperado. Nos concertos dos Paus é assim: quem está em palco e na plateia é um só corpo. Dançam todos à volta da fogueira da existência de forma catártica. “Estamos juntos”, costumam eles gritar para a atmosfera. 

A coisa tornou-se séria

Estes são os PAUS dos concertos, transcendendo-se, acreditando na exposição sem representações. Mas agora à nossa frente está apenas o Hélio, tipo tranquilo e generoso, o Quim, perspicaz e rápido a apreender a realidade, Makoto, um pouco misterioso, e Fábio, o menos conhecido, tendo entrado para a formação há meio ano, substituindo um dos fundadores, o Shelas. Gente sem peneiras. Boa gente. A 28 de Abril lançam o segundo álbum, Clarão, e o culto desenvolvido nos últimos anos pode muito bem alargar-se. 

Não porque contenha singles orelhudos, ou porque o grupo tenha domesticado a sua sonoridade, procurando o formato convencional de canção, por exemplo. Pelo contrário. É até um álbum de recepção menos imediata, necessitando de ser ouvido com exigência, para se ir destapando as sucessivas camadas que nos guiam até aoCume, nome de um dos temas, onde cantam que “vai parecer maior do que é, quando lá chegar”. 

É um álbum de carga épica, à for da pele, mas ao mesmo tempo contendo subtilezas que é preciso ir apreendendo. “Acima de tudo é mais vivido e intenso, tendo mais estímulos do que os anteriores discos”, sintetiza Quim. “Em termos rítmicos é o mais bem conseguido, se pensarmos no desafio a que nos propusemos inicialmente, que era ter duas baterias siamesas a apontarem para coisas diferentes. Este disco é mais conseguido nesse sentido.”

Falando com o quarteto percebe-se que o projecto passa por um período crucial. A coisa tornou-se séria. Em Portugal o álbum será editado pela multinacional Universal. E para o resto do mundo, através da El Segell, a estrutura editorial espanhola conectada com o festival Primavera Sound, com distribuição da PIAS. Nos últimos tempos os concertos internacionais já se tornaram um hábito, mas daqui para a frente esse é o grande desafio que têm entre mãos. “Dos trinta concertos agendado para os próximos meses, apenas seis são em Portugal”, revela Hélio. 

Para França, Inglaterra, Holanda ou Bélgica, levam Clarão, álbum de neo-rock tocado como se fosse música de dança, com qualquer coisa de primitivo e simultaneamente de rigoroso. O jogo rítmico das duas baterias é central, mas os soluços sensuais do baixo e os ambientes cósmicos atribuem uma cor singular. Música que não segue padrões precisos, mas que no entanto se pode tornar viciante, por entre descargas sonoras descontroladas e criação de ambientes inóspitos. Música tribalista e urbana e, dentro desse espírito, que não no modelo sonoro, podendo ser encontrados pontos de ligação com bandas tão díspares como Health, Battles, Fuck Buttons ou Black Dice. 

E depois existem as palavras em português. Poucas palavras, sempre. No entanto, importantes, ajustando-se ao som, criando uma actividade também rítmica. Não é tanto o significado que interessa, mas o lado corpóreo como é dito. O poder emocional das canções dos PAUS jogam-se aí, nessa dimensão material, para onde tudo conflui – ruído, melodias, vozes. Oiça-se Pontimola. Uma voz grita: “Pa trás, recua, pa trás, faca na liga, faca na mão, não me ouves, não me sabes, pa trás, recua, pa trás”. Palavras simples, mas ditas de forma quase maníaca, ganhando carga emocionante, sublinhadas pelo som algo claustrofóbico. 

Mas depois existem temas instrumentais como Ambiente de trabalho ou Primeira, mais relaxados e soltos, propondo uma digressão espacial, com os teclados a criarem um arsenal de climas, com influências psicadélicas. Música de bofetada na cara, para fazer ver melhor, mas que não deixa de ser elaborada, como em Nó, começando plana, para desembocar numa cantilena colectiva e num ataque desvairado à procura do arrebatamento. 

Hoje fica a ideia que o grupo conseguiu criar o seu espaço. Mas quando os PAUS começaram, em Novembro de 2008, estavam longe de imaginar o que viria a acontecer. “Foi aventura, pura e dura”, afirma Quim. “Aliás, o primeiro concerto que demos, no evento Avenida, organizado pela Filho Único, foi um ensaio com público. Ou seja, foi improvisação. E até nem correu bem. A ideia era tocarmos juntos com a premissa de termos duas baterias juntas numa só. A base era divertirmo-nos. Nem sequer tínhamos nome.”

Depois, em Maio de 2009, aconteceram as primeiras gravações, recorda Hélio. “Eu e o Quim ensaiámos umas vezes no edifício da Interpress e fomos gravar os ritmos que fizemos, com o Makoto, que pôs o baixo, e o Shela os teclados.” Mas a ideia não era formar uma banda nova, elucida Quim. “Foi quando ouvimos a primeira música que criámos, Pelo pulso, que ouve ali um clique. De repente, tínhamos ali qualquer coisa. E quando demos por nós, tínhamos quatro temas, e tínhamos mesmo um EP entre mãos.”

O EP É uma água saiu em 2010, na Enchufada, dos Buraka Som Sistema, chamando de imediato a atenção. Um facto reiterado pelos espectáculos ao vivo. “Mas mesmo depois do EP não estávamos com grandes expectativas e nem sequer tentámos arranjar uma agência – fazia eu o agenciamento. A ideia era tocarmos em dois ou três sítios e pouco mais”, reflecte Hélio. “Mas progressivamente a coisa foi-nos fugindo de mão.” E Quim completa: “A sensação que tínhamos é que ninguém iria perceber aquilo e que iria bater com estrondo na trave.”

Mas não. Foi mesmo golo. E apenas com um EP entre mãos o grupo viria a actuar em festivais como o de Paredes de Coura, Optimus Alive!, Milhões de Festa ou Super Rock Super Bock, expondo um dispositivo cénico e uma energia que surpreendia. 

Todos os membros do projecto provinham de outras formações. Quim havia sido vocalista nos Vicious Five (irão voltar a reunir-se para o Optimus Alive! em Julho). Hélio foi fundador dos Linda Martini e If Lucy Fell. Makoto pertence aos If Lucy Fell e Riding Pânico. E Fábio é dos Riding Pânico, Blasfemea e Men Eater. Pontos em comum entre os quatro? O espírito faça-você-mesmo do punk, as ramificações hardcore, e essa ideia de que qualquer um pode subir a um palco, e fazer existir comunicação, se houver exposição sem simulacros. 

“Os PAUS foram a nossa primeira banda sem a figura de um frontman. O Makoto tinha essa função nos If Lucy Fell, eu nos Vicious Five e o André [Henriques] funciona, mais ou menos, com esse papel nos Linda Martini”, diz Quim, tentando justificar as dúvidas do início. “Havia uma série de coisas, em termos de formato, que eram novas para nós e não sabíamos como iriam funcionar. Essa diferença assustava um pouco”, explica. 

“Sabíamos que havia uma franja habituada a querer novo e diferente que nos poderia acolher. Agora cinco anos depois, termos dois álbuns e um EP, com edições e concertos lá fora e termos ido três vezes ao Primavera de Barcelona, isso não esperávamos...” 

Nos outros grupos desempenham papéis diferentes. Hélio é sempre baterista, mas nos PAUS acaba por se evidenciar mais. Quim cantava, agora toca bateria. E Makoto é a figura de destaque nos If Lucy Fell, acabando por estar mais na sombra nos PAUS. “Sinto-me melhor a tocar cá atrás do que à frente”, lança, sorrindo. “Gosto da cena de ficar escondido, com o cabelo a tapar-me a cara e ninguém me vê. Os PAUS são um desafio.” E Hélio propõe uma imagem: “Sabe bem tocar com eles, todos muito juntos. É como se fossemos uma máquina. Existe muita partilha.”

O estúdio antes do palco

O primeiro longa-duração homónimo haveria de chegar no final de 2011, editado pela Valentim de Carvalho, e mais uma estranheza, a entrada directa para o 3º lugar da tabela nacional de vendas. Daí para a frente, tornaram-se presença ainda mais assídua nas salas e festivais do país, e não só. Em Março estiveram no México, para duas datas, e no conhecido festival South By Southwest, em Austin, EUA. Uma experiência americana que não valorizam muito. “É um festival ingrato, são muitas bandas a tocar no mesmo dia, porta a porta, com salas de concerto que nunca mais acabam”, diz Makoto, apesar de terem estado numa situação privilegiada em relação à maior parte dos grupos, graças à parceria com o Primavera Sound que lhes permitiu actuar para promotores ou editores. Já o teste mexicano foi diferente. “Aí sim, valeu a pena”, avalia Hélio. “Tocámos na Cidade do México e correu bem. Fizemos imensa promoção, com muitas entrevistas e os concertos foram bons.” 

Para o novo álbum não houve grandes conversas. Não acreditam em grandes preparações prévias, mas sim no instinto do momento, na reacção que cada um vai desencadeando nos outros. “Não tem que resultar com todas as bandas, mas connosco é assim”, verbaliza Fábio: “Um introduz um ritmo, às tantas o outro entra com o teclado e as coisas vão acontecendo aos poucos. E depois fazemos uma edição final, para não ficar muito mecânico.” 

“A nossa forma de compor é mais próxima dos princípios da música electrónica”, reforça Hélio. “Existe um motivo que é introduzido por um de nós e os outros vão reagindo a ele. É um trabalho, simultaneamente, de intuição e, depois, de pós-produção. É diferente dos Linda Martini, que é uma banda de ensaios.”

Mesmo assim, cada uma das canções começa sempre de forma diversa. Não há propriamente um método, embora o normal seja fazer coexistir o momento da composição com o da gravação. 

Depois de tocarem sem calculismos, vão esculpindo cada canção, até chegarem a um resultado satisfatório. “Curiosamente, a primeira sugestão concreta para este disco, até foi o título. Conversámos sobre isso, mas depois toda a gente se esqueceu”, lembra Quim, querendo com isso afirmar que existe uma sintonia entre os quatro, apesar das diferenças. “Temos sensibilidades diversas, mas quando se trata de condensar as ideias, seja através do título do disco, ou das letras, sentimo-nos à vontade e funcionam como síntese do que todos sentimos”, diz. 

A honestidade, e a verdade que colocam nos gestos são vividas como essenciais e Hélio exemplifica com a forma como é gerida a transposição do estúdio para o palco. “Na forma como conduzimos a música existe essa verdade. Não somos músicos exímios, e se elaborarmos muito em estúdio, através da pós-produção, temos depois dificuldade em tocar as canções ao vivo. Nesse sentido, acabamos por nos expor e arriscamos porque é depois do estúdio que acabamos por ensaiar, digamos assim.” 

A relação que mantém entre o acto de criar em estúdio e a explanação ao vivo é curiosa, existindo um período de ambientação, depois das gravações. Nem sempre é fácil reproduzir o que criam em estúdio. “Temos que criar adaptações”, revela Hélio, esbatendo a ideia de que poderiam estar em estúdio com a cabeça no palco. “Pelo contrário”, ri-se Makoto. “Em estúdio temos a liberdade de fazer tudo o que a ideia nos sugere. Depois das gravações, sim, temos que fazer coisas que não prevíramos.”

Mas Quim vai mais longe, argumentando que o enquadramento com a autenticidade vai além da relação primordial com a música. “Não fazemos nada que vá contra a nossa natureza. Seja no que dizemos, no que vestimos, nos locais onde vamos tocar, como tocamos, ou nas escolhas dos sons. Mesmo quando olhamos para o disco, a maior parte do que se ouve ali foram as ideias iniciais. A espontaneidade activa as ideias e depois cada um, com a sua capacidade, e respectivos canais de expressão, vai reagindo a elas.” 

E voltamos ao palco, ao local sagrado onde essa magia de agarrar o momento instintivamente mais se faz sentir. O que sentem eles ali? “Um turbilhão de coisas”, dizem, dizendo tudo e nada. 

Porque talvez não exista muito para dizer, mas sim para compartilhar. Se já os viram por aí, sabem como é. Hélio Morais e Joaquim Albergaria levantam os braços, batem as baquetas no ar, antecipando que o som vai subir, e que a canção, qualquer canção, vai entrar numa segunda espiral de som. Os teclados de Fábio Jevelim parecem abrir espaço para a cadência imparável, enquanto Makoto tenta manter-se concentrado nos pedais à sua disposição, mas acaba por deixar-se ir também na exaltação, cantando todos ao mesmo tempo, eles e público, impondo mutações de intensidade, deixando a música gritar na mesma direcção, eufórica e livre. 

E no final, Joaquim Albergaria, limpando o suor, dirá, com a voz ainda estafada: “Obrigado. Que grande ambiente. Estamos juntos.” 

 

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PAUS
Clarão
Edi. e distri. Universal

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