Bouteflika não fez campanha mas vai ser reeleito pela quarta vez
O descontentamento com a nova candidatura do Presidente levou parte da oposição a unir-se para apelar ao boicote e fez surgir um novo movimento de protesto.
Bouteflika, 77 anos, foi quase invisível na campanha para as eleições presidenciais desta quinta-feira. Não esteve num único comício; em vez disso, preferiu enviar mensagens aos eleitores. Tal como acontece há um ano, desde que teve um acidente vascular cerebral, o Presidente só apareceu na televisão em breves imagens durante encontros com responsáveis estrangeiros. No primeiro, no início do mês, com o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, o discurso de Bouteflika foi confuso e quase inaudível.
No último domingo, perante o ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, José Manuel Garcia-Margallo, o chefe de Estado aproveitou para descrever uma campanha “muito dura”, acusando de terrorismo “um candidato que ameaçou os presidentes de câmara, dizendo que se vai dedicar às suas famílias em caso de fraude” – sem o nomear, estava a falar do principal rival, Alis Benflis. Depois, sem pausas, comentou a vitória do Atlético de Madrid sobre o Barcelona, nos quartos-de-final da Liga dos Campeões.
“É certo que não está confortável para estar de pé, mas não sofre de nenhuma outra deficiência, física ou mental”, disse Ahmed Ouyahia, três vezes primeiro-ministro e actual chefe de gabinete, numa conversa com o jornal The New York Times, depois de Bouteflika ter recebido Kerry. “Está perfeitamente capaz de governar”, garantiu.
Os rivais chamam-lhe zombie e garantem que não será ele, doente, a governar a Argélia. Nos comícios, o palco ficou entregue aos seus ministros, principalmente ao ex-primeiro-ministro e director de campanha, Abdelmalek Sellal. “Se perdermos a estabilidade, perdemos a soberania”, insistiu Sellal. A oposição responde que reeleger um chefe de Estado doente significa criar um facto de instabilidade.
“Os argelinos precisam de uma personalidade que os possa unir, especialmente neste clima de terror alimentado por alguns candidatos”, diz Ouyahia. “Bouteflika é a escolha mais apropriada para unir o povo argelino num consenso nacional. Uma grande maioria da nação apoia-o.”
Nas últimas presidenciais, em 2009, Bouteflika teve uns improváveis 90% dos votos. Dois anos depois, no início de 2011, uma vaga de protestos pareceu capaz de ameaçar o seu regime, ao mesmo tempo que as manifestações enchiam as ruas das cidades da Tunísia.
Num país onde o Exército se confunde com o poder político (e são os militares que verdadeiramente escolhem os líderes), Bouteflika tinha os milhões do gás natural e do petróleo e começou por travar os protestos com aumentos salariais que nalguns casos ultrapassaram os 100%. Ao dinheiro, juntou o discurso do medo – do islamismo e do terrorismo, que na Argélia são sinónimo de uma guerra civil que matou 200 mil pessoas anos 1990. Funcionou.
Agora, basta
“O nosso tempo chegou ao fim”, anunciou Bouteflika aos argelinos em 2012. O seu tempo, o tempo dos que como ele fizeram a transição da violência para a estabilidade. Mentiu. E é por isso que apesar de terem um vencedor anunciado estas eleições são diferentes das anteriores. A maior novidade chama-se Barakat (Basta), um movimento de protesto recém-criado (a partir de grupos que começaram por surgir em 2011) que não reconhece as presidenciais e que conseguiu organizar manifestações em dezenas de cidades durante a campanha.
Quando Bouteflika disse que o seu tempo tinha chegado ao fim assinou “um contrato social em que concordava passar o testemunho; do outro lado, a oposição faria concessões para evitar que o país resvalasse para a violência”, explica Mustapha Benfodil, escritor e jornalista, e um dos membros fundadores do Barakat, numa entrevista para o site independente Democracy Now. A perspectiva era que o novo candidato do regime pudesse ser obrigado a fazer concessões – reformas democráticas e sociais. Bouteflika rasgou o contrato e os protestos regressaram.
Para além do Barakat, o anúncio de uma nova candidatura do chefe de Estado provocou a união de cinco partidos, incluindo três formações islamistas moderadas e os radicalmente laicos da Assembleia para a Cultura e Democracia, numa coligação que apela ao boicote. Pela primeira vez, aliás, não há candidatos islamistas às presidenciais. Outro facto inédito num país onde o Exército age em silêncio: oficiais de alta patente na reforma criticaram a recandidatura e isso foi notícia.
Ataques a jornais e televisões
Vários jornais e televisões arriscaram desta vez um discurso mais crítico – e pagaram por isso. Num comunicado, a Amnistia Internacional denunciou “graves ataques à liberdade de expressão”: houve jornais que perderam a publicidade institucional e canais de televisão privados encerrados. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a campanha eleitoral foi coberta por “quatro canais do Estado e alguns canais estrangeiros financiados pelos serviços secretos.”
Ao mesmo tempo, a muitos jornalistas estrangeiros que pediram vistos foi dito que só poderiam trabalhar em determinadas cidades; os atrasos na emissão dos vistos foram tão grandes, dizem os RSF, que muitas organizações se viram obrigadas a diminuir o número de temas que pretendiam tratar.
Ali Benflis baseou grande parte da sua campanha na denúncia da fraude eleitoral. Ele, que foi chefe de campanha de Bouteflika em 1999 e depois seu ministro, garante saber do que fala. “Estejam vigilantes”, pediu num comício. “Os que se habituaram a pilhar a palavra do povo, a roubar a sua vontade, querem manter os seus velhos hábitos de fraude”, acusou. “O candidato do poder não pode ganhar sem fraude”, denunciou, por seu turno, Abdelrezak Mokri, líder dos islamistas do Movimento da Sociedade da Paz, membros da coligação governamental até Janeiro de 2012 e que agora integram o grupo de partidos que apela ao boicote.
Depois do escrutínio, Benflis diz-se disposto a lutar “pela transparência e pela democracia” e acredita que, “desta vez, os argelinos não vão aceitar a fraude”. O Barakat prepara-se para marcar novos protestos a pedir a aplicação do Artigo 8 da Constituição, aquele onde se lê que num cenário de incapacidade física do Presidente, o Conselho Constitucional deve afastá-lo e entregar o poder ao líder do Senado até à realização de novas eleições. Para já, a única certeza de todos parece ser mesmo a reeleição de Bouteflika.