Já podemos ser solteiros sem sermos pressionados?

Ivo e Mariana são solteiros em terra de casais. Será que lhes é socialmente permitido não ter uma relação? Há uma pressão para a conjugalidade ou vive-se só, e bem acompanhado?

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Yuriko Nakao/Reuters

Às vezes, em jantares de amigos, Ivo Brandão olha à sua volta e faz as contas. Dez amigos, alguns com filhos, quase todos casados ou, pelo menos, “juntos”, já numa “fase de pensarem no que vão fazer na vida”. “E depois estou eu, sem ninguém.” Mariana Cardoso, por seu turno, acha curioso quando um qualquer casamenteiro se oferece para “ajudar” um qualquer solteiro. “Quem diz que é ajudar? Um licenciado em Sociologia até pode preferir trabalhar atrás de um balcão. Dizem ‘vou tentar ajudar’, mas se calhar não é isso o que ele quer. Acontece o mesmo nas relações. Acontece em tudo que vá contra os paradigmas sociais.”

Ivo e Mariana são solteiros em terra de casais. De acordo com o Censos 2011, em cada 100 portugueses, 40 estão solteiros, 47 são casados, 7 são viúvos e 6 são divorciados. Será que hoje, ao fim de 40 anos de liberdade, é-lhes socialmente permitido não ter uma relação? As alegadas amarras de um país tradicionalista ainda se reflectem numa pressão para a conjugalidade ou vive-se só, e bem acompanhado?

“Existe essa pressão social que a estabilidade passa por casar e ter filhos”, responde a arquitecta paisagista Mariana Cardoso, recém emigrada em Moçambique. É esse o “paradigma social”. Uma pressão que existe, porém cada vez menos, também porque “há cada vez mais pessoas livres dessas ideias”.

Ivo Brandão

"Livre” de “ser sozinha"

Com 32 anos, Mariana tem um objectivo: “Conhecer o máximo de países, povos, culturas.” Nunca sentiu a “necessidade de estabilizar” — “Costumo dizer que sou sempre mais feliz no momento de partir.” Em 15 anos, passou por Vila Real, Évora, Copenhaga, Porto (onde nasceu), Lisboa e, agora, Moçambique. Não tem uma relação estável há seis, sete anos. Solteira por opção, no sentido em que não quer estar com alguém “por estar”. Sente-se “livre” de “ser sozinha” e estar “tranquila”, de não pensar uma relação — “Não surge, não acontece, não há problema.”

No evoluir das conversas, Ivo, de vez em quando, lá ouve

É, “eventualmente, uma miúda cheia de sorte”. Da família nunca sentiu qualquer pressão para “viver de forma tradicional”. Os pais sempre foram muito abertos — fosse para estudar, emigrar ou casar. Curiosamente, a irmã é quase o seu oposto: 36 anos, casada, com um filho. Amigos casados não tem nenhum. Alguns a viver juntos, outros com amigos, dois ou três com filhos. E nenhum lhe faz “casamentinhos”.

Mariana Cardoso

“Não acho nada que vivamos como na altura dos meus pais. Quando eles tinham a minha idade, quase que havia uma necessidade de viver em casal. Acho que há ainda uma pressão social, sim, mas cada vez mais as pessoas conseguem tomar a sua decisão, independentemente daquilo que é o funcionamento da sociedade.” E, para Mariana, esta geração jovem tem particularidades “muito claras” que também contribuem para que os modelos sociais “evoluam” e se “adaptem”, nomeadamente a instabilidade laboral e económica ou esta nova vaga de emigração.

Mariana Cardoso

“As pessoas já não têm a necessidade de fazer as coisas de uma forma tão tradicional”, concorda Magda Nico, investigadora na área de trajectórias sociais e transições para a vida adulta, actualmente a realizar o pós-doutoramento no CIES-IUL, para quem é igualmente urgente parar de associar os padrões portugueses à herança de um “país católico e tradicional” e atentar antes aos “obstáculos estruturais e financeiros” com que os jovens se deparam actualmente. “Os pais estão muito mais preocupados se os filhos têm emprego do que se têm namorado.”

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Mariana Cardoso tem 32 anos e está a viver em Moçambique Bárbara Raquel Moreira

Mulheres: as mais tradicionais e modernas

No seu doutoramento, concluído em 2011, Magda debruçou-se precisamente sobre as transições para a vida adulta dos jovens portugueses e apercebeu-se de que “há uma diversidade de percursos e vivências de orientação para conjugalidade”. Dos 52 entrevistados, poucos lhe falaram de pressão familiar. Quando muito, só quando existia uma ruptura amorosa é que os pais manifestavam mais preocupação. Foi entre as mulheres que a investigadora encontrou as “posturas mais tradicionais” (“não viam qualquer necessidade sair de casa dos pais sem ser com o marido”) , mas também as mais “desligadas da conjugalidade”, um “paradigma da individualização” que, para alguns autores, é uma “especificidade feminina”, uma forma de elas ultrapassarem as pressões sociais (de que são alvo de modo mais “acentuado” do que os homens) e contrariarem a visão mais tradicional.

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Com 33 anos, Ivo Brandão é assessor na Câmara Municipal de Arouca Paulo Pimenta

“As pessoas ‘juntas’ [e casadas] tendem a ser mais felizes do que as ‘sozinhas’”, evidencia Gabriel Leite Mota, investigador em Economia da Felicidade, referindo-se às conclusões de alguns estudos na área. “Uma pessoa sozinha sente-se um pouco uma ‘outsider’ porque está fora do enquadramento social.” Sim, considera o professor universitário, “ainda há uma pressão social para as pessoas se juntarem”, até porque há uma certa “inércia à mudança” no que toca ao modelo familiar. Afinal, o ser humano tende a replicar o que apreendeu, os comportamentos anteriores. E cria expectativas.

“Quando eu tinha 17 anos, projectava-me com 30 e imaginava uma situação profissional muito mais sólida do que a que aconteceu”, exemplifica Gabriel. Como ele, também grande parte desta geração está “em choque com as expectativas”. Esta instabilidade influencia a conjugalidade? “O desemprego é uma das variáveis mais destrutivas do bem-estar. Nós, em Portugal, com uma taxa de desemprego jovem altíssima, emigração forçada, choque de expectativas... é um caldo de infelicidade. E dificulta a vivência a dois.”

Precariedade: causa para “adiar decisões"

Magda conta que a precariedade já era, durante a realização da sua tese, uma das grandes causas para “adiar decisões”. Como a história da jovem que namorava há 11 anos e estava noiva há uma data deles porque aguardava que ambos tivessem uma situação laboral minimamente estável. “A pressão maior, para além da biológica [no caso de ter filhos], era ‘tenho de resolver a minha vida profissional’.”

“A estabilidade laboral já perturbou as minhas relações”, afirma Ivo Brandão, 33 anos, assessor na Câmara Municipal de Arouca, solteiro há meio ano, saído de uma relação de dois anos. Por exemplo, em situações em que teve de fazer horas extra, ou estava ocupado num segundo emprego (já deu aulas de música e canta em casamentos), e deparou-se com “falta de compreensão” do outro lado.

Nas duas últimas relações, as namoradas frequentavam a casa, iam a festas familiares. A meta do casamento pareceu-lhe “muito próxima”. Continua a encarar esse quadro com “naturalidade”, tal como o de ser pai. “É aquela velha ideia: plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. De todas as coisas, talvez ter um filho seja a que dê menos trabalho e mais prazer. Socialmente, é um bocado para aí que tudo nos conduz.” No entanto, vê o cenário oposto com igual “naturalidade” — a naturalidade de “quem está sozinho e não está desesperadamente à procura de alguém”.

Não se sente “à margem”. A família não o pressiona. Entre amigos, só um ou outro “arranjinho”. Ok, e de vez em quando, “no evoluir das conversas”, um ou outro comentário. “Quando é que resolves o problema?”, questionam, referindo-se ao estado civil. “Vê lá, quero pôr os pés debaixo da mesa!”, isto é, “quero ir ao teu casamento”. A mãe, com quem vive, quando às vezes aborda o assunto, tem uma postura contrária: “Tu já pensaste que se calhar não tens vocação para teres uma relação?”

Como é que é ser solteiro, na casa dos 30 anos, numa sociedade orientada para a conjugalidade? E ter seguido esse trilho e estar agora algures noutro caminho? “É aquela sensação de estar fora, mas sempre com um pé dentro para ver o que é que se passa [risos]. É não estar nessa situação, mas pensar... toda a gente vai por ali e eu vou por aqui. [...] A qualquer momento pode-se mudar de equipa. Como no futebol, num jogo entre solteiros e os casados.”

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