O lar a quem o trabalha
Jorge Silva Melo cumpre com esta estreia mais uma etapa na missão de divulgar o reportório dramático ocidental e, neste caso em particular, a dramaturgia contemporânea.
Este texto de Harold Pinter, O Regresso a Casa, chega ao Nacional 50 anos depois da sua estreia pela Royal Shakespeare Company em Londres – um ligeiro atraso, digamos, mas pelo menos um atraso redondo. Na peça, competem entre si para impor pontos de vista aos demais uma mão-cheia de personagens, entre os quais Max (João Perry), um pai impotente que preside à sala de estar onde param dois filhos aparentemente inúteis, alvos de rotativa agressão verbal por parte do velho, e um irmão, o tio Sam, testemunha mais antiga de segredos inconfessáveis (nem mais nem menos que o próprio Jorge Silva Melo). O outro filho, primogénito, ausente no estrangeiro, mais precisamente nos Estados Unidos, onde é professor de Filosofia, regressa uma madrugada com a esposa, para apresenta-la à família de varões. Esta mulher, que se revelará tão enigmática como a esfinge do mito, mas que, em vez de parte serpente, parte leão e parte águia (vem nos livros), é parte mãe, parte esposa, parte puta, torna-se foco de disputa entre os homens. A subversão destes distintos papéis femininos, doutro modo considerados estanques e mutuamente exclusivos, parece não ter perdido a frescura, apesar do meio século que nos separa dos anos 60. A revolução sexual tem de ser feita todos os dias.
A encenação ganha momento no segundo acto, quando é feita a proposta de que Ruth se prostitua no seio da família. A proposta é feita com tal desfaçatez, pelo menos nesta encenação, que só podemos estar na presença de uma comédia negra. Perry é formidável na franca brutalidade com que apresenta a ideia. Identificado o subgénero dramático, o público pode rir do que o incomoda. Logo um dos filhos, Lenny (Elmano Sancho), qual jovem empreendedor, vê uma oportunidade de negócio e propõe que a mulher faça umas horas por fora para ajudar nas despesas da casa, aumentando, por assim dizer, a produtividade. O público oscila entre o riso e o maravilhamento quando se passa a negociar os termos do contrato. Mais adenda, menos adenda, a negociação é conduzida pela implacável Ruth. Os homens fizeram um grande negócio, contratando uma super-mulher-a-dias. Teddy, o marido, encara a coisa filosoficamente, como se não tivesse tanto a perder. Mas, visto de outro ângulo, eles são conquistados, divididos e reinados por ela.
Jorge Silva Melo cumpre com esta estreia mais uma etapa na missão de divulgar o reportório dramático ocidental e, neste caso em particular, a dramaturgia contemporânea. Contemporânea de coeva. Afinal, 1964, 1965, 1966, 1967, etc., continuam presentes. A peça ecoa a dramaturgia clássica e a moderna, dos gregos aos russos, aos eslavos, aos irlandeses, revelando a maestria de Pinter, e apresentá-la é prestar um serviço público à nação, o de estimular o debate e a imaginação. Ainda por cima, que João Perry brilhe no centro do palco do Nacional e o próprio encenador possa ser visto em cena são suplementos valiosos para a experiência do aficionado de teatro. Maria João Pinho preserva o enigma: nenhum daqueles pequenos Édipos faz ideia do que aconteceu. O humor da situação está originalmente no texto e é natural que seja rindo que assistimos ao desenrolar da fábula, ainda mais no nosso tempo, em que as mulheres conciliam livremente o que antes parecia monstruoso: casa, trabalho e lazer. Ou não?