“A criação do salário mínimo em 1974 foi um impulso para a economia”

Avelino Pacheco Gonçalves ministro do Trabalho no I Governo provisório que criou o salário mínimo nacional, lembra que o novo poder aquisitivo dos trabalhadores impulsionou a economia.

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"Foi a altura de muitas famílias deixarem de dormir em tarimbas", lembra Pacheco Gonçalves Jorge Miguel Gonçalves/nFactos

Conversámos com ele em 2009, numa altura em que se acreditava que o então primeiro-ministro José Sócrates, tal como acordara em sede de concertação social, faria subir o salário mínimo nacional para os 500 euros em 2011. Mesmo que essa promessa tivesse sido cumprida, sustentava já então Avelino Gonçalves, manter-se-ia “o atraso de cerca de 20% relativamente ao poder aquisitivo daqueles anos”. Cinco anos depois, o PÚBLICO reencontrou-o, numa altura em que cerca de 400 mil trabalhadores continuam a auferir apenas 485 euros por mês.

Como surgiu o decreto (nº217/74, de 27 de Maio) que instituía o salário mínimo nacional?

Há que lembrar que sob o regime fascista vigorava o Estatuto do Trabalho Nacional que expressamente declarava o predomínio dos interesses do capital sobre os trabalhadores. E acontecia, em consequência, o que acontece também hoje: na repartição funcional do rendimento, 60 e tal por cento ia para o capital e 40% para os trabalhadores. Portugal era, antes do 25 de Abril, um país onde os trabalhadores em particular viviam muito mal. Durante alguns largos anos aquela proporção inverteu-se. Mas hoje estamos de novo numa situação em que 60 e tal por cento do rendimento vai para o capital e uns 40 por cento para os trabalhadores. Mas a reivindicação do estabelecimento de um salário mínimo nacional vem de antes do 25 de Abril. Recordo-me de um plenário da Intersindical, em 1973, em Lisboa, no Sindicato dos Químicos, cuja ordem de trabalhos era a reivindicação de um salário mínimo nacional.

Como chegaram aos 3.300 escudos?

Por negociação com o Governo. A proposta que lancei foi de quatro mil escudos e a que foi aprovada, depois de largos dias de debate e análise em grupos de trabalho, de 3.300. Era um valor que abrangia 56% dos trabalhadores portugueses. E que representava um “escandaloso” aumento para muita gente, visto que, por exemplo, no sector têxtil, o rendimento médio era claramente mais baixo. As mulheres tinham uma média de ordenados nesse sector para aí de mil escudos. E também essas foram abrangidas.

Essa diferenciação segundo o sexo estava em corpo de lei?

Não, era uma prática. E também havia grandes desníveis salariais entre sectores. Eu era empregado bancário e o meu salário nominal era, na altura, de 10.800 escudos, o que correspondia a mais que três vezes o salário mínimo que viria a ser fixado. E era um simples empregado bancário com sete anos de serviço. Há que dizer que desde sempre houve concepções diversas sobre o modo de garantir a repartição do rendimento. E que é evidente a incapacidade e a incompetência do mercado para garantir equidade na distribuição do rendimento. Quando entrei no ministério, pedi todos os estudos que houvesse no gabinete de estudos económicos do Ministério das Corporações e da Solidariedade Social, que existia antes do 25 de Abril. Entre os trabalhos que recebi, estava um estudo feito por impulso de técnicos qualificados do ministério - aliás, gente com belíssimas qualidades - que, depois de estudados os efeitos da mulher fora do lar sobre a educação dos filhos etecetera, propunha a instituição de um subsídio às mães donas-de-casa de 2.250 escudos mensais. Isso representava naquela altura para aí o dobro do salário médio das mulheres. É evidente que no plano económico isto era inexequível, portanto, isso nunca avançou, também pela inexistência de grande vontade em que avançasse.

Na base desta proposta haveria também algum pendor ideológico, no sentido de segurar as mulheres em casa.

Sim, muita gente que preparou aquilo era do sector católico mas que tinha preocupações sociais.

Qual foi a reacção das entidades patronais e que impacto teve então a instituição deste salário mínimo na economia?

O salário mínimo nacional teve um grande impacto na economia. Durante muitos anos, se fosse ao acaso pelo país e perguntasse aos trabalhadores como é que tinham sentido o salário mínimo, uma larga percentagem diria: “Pela primeira vez, pude fazer muita coisa”. Era muito frequente, no Norte, por exemplo, as pessoas referirem que esse foi o tempo em que finalmente compraram a primeira mobília. Porque visitar uma casa de um operário têxtil, do calçado ou da construção civil, era visitar uma casa ou um abrigo quase completamente desguarnecido, não equipado. E era evidente que os casais tiveram pela primeira vez a oportunidade de melhorar a sua vida.

Houve uma de corrida aos electrodomésticos.

Naturalmente. Foi a altura de muitas famílias deixarem de dormir em tarimbas, de ter uma mesa cómoda para se sentarem a almoçar ou a jantar com os filhos. E de, lentamente, equipar a casa com fogões e outros electrodomésticos.

E do lado dos patrões?

Houve uma primeira reacção de susto. Muitos patrões pensaram que o caminho deles era a falência. Sempre tentei convencer todos que não era isso que desejávamos, pelo contrário, e estou convencido, olhando agora para trás, que o salário mínimo nacional foi importante para evitar que os portugueses sofressem os efeitos de uma crise económica internacional que se registou entre 1973 e 1975 e que, cá, as pessoas praticamente não sentiram. Em Portugal, a crise não se sentiu porque a alteração da capacidade aquisitiva das pessoas foi um impulso para a economia. Os pequenos patrões da área do mobiliário, têxteis e calçado anunciavam em conversas comigo que iam falir. E eu pedia-lhes que dessem tempo ao tempo e mais tarde eles reconheciam que a produção tinha aumentado sob o impulso do consumo, que provavelmente conseguiriam subsistir e que aquilo foi até uma óptima ajuda para eles. O efeito não foi catastrófico, contrariamente àquilo que muitas pessoas esperavam.

Esses 3300 escudos corresponderiam, em termos de poder de compra, a que números actuais?

Penso que isso corresponde mais ou menos aos 600 euros. Portanto, mesmo que o salário mínimo suba para os 500 euros, terá um atraso de cerca de 20% relativamente ao poder aquisitivo daqueles anos. Mas isto falando apenas em termos económicos. É possível dizer hoje a uma família com filhos a estudar que dispense a Internet, o computador, o telemóvel e a TV por cabo? Não é justo que isso seja feito nem dito. E, no entanto, temos que nos perguntar como é que as pessoas que vivem hoje com o salário mínimo ou menos, ou que estão desempregadas, conseguem encaixar no seu orçamento 60 ou 70 euros só para telecomunicações. Isto corresponde a mais de 10% do orçamento familiar em muitos casos. Temos condições para isto? Claramente que não. Alguma coisa está mal neste quadro de organização da economia. Há tempos o professor Luís Imaginário [um dos impulsionadores do ensino profissional em Portugal] chamava a atenção numa conferência para o facto de o emprego, tal como nós e os nossos pais o conheceram, ter acabado. Estou convencido disso também. Não estou a dizer que é dispensável a produção e que é desnecessário o trabalho material ou a transformação das matérias-primas. Mas hoje temos capacidade para que apenas uma parte da humanidade produza para todos. E, no entanto, toda a gente tem que viver. Portanto, dizia ele que qualquer pessoa devia nascer com um cartão de crédito na mão. E isso vem ao encontro de uma coisa que venho dizendo há muito: nós temos que nos organizar diferentemente. Temos que poupar a Natureza, dispensar coisas que gostaríamos de ter, de perceber que pode não ser justo – não é justo com certeza - que todos tenhamos os carros que temos quando essa é uma prática que não pode ser adoptada a nível mundial. Os chineses não podem ter a quantidade de carros que nós temos, em termos relativos, porque, se assim fosse, tudo isto soçobrava. Mas então temos que nos organizar para viver de modo diferente. O Estado tem que organizar as coisas de um modo diferente.

É aquela ideia do estabelecimento à partida de um rendimento para cada pessoa que nasça, independente do trabalho?

Acho que sim. E que é, aliás, uma proposta que nasceu, há muitos anos, entre economistas norte-americanos que propõem aquilo a que eles chamam o imposto negativo e que implicaria garantir a toda a gente um certo nível mínimo de rendimento, acabando-se com as discriminações vexatórias entre quem recebe subsídios do Estado e quem não recebe. E deixando depois que as pessoas somassem a esse rendimento mínimo tudo aquilo que fossem capazes de usufruir por seu mérito directo, fruto do seu trabalho ou da sua iniciativa empresarial.

De onde viria a riqueza?

A riqueza vem sempre do trabalho. Não há riqueza nenhuma que não resulte do trabalho directo e remunerado, embora parcamente mas remunerado, ou da iniciativa empresarial, que é ainda trabalho, ou do trabalho que foi confiscado aos trabalhadores noutra época e noutro sítio. E, finalmente, toda a produção se faz com trabalho. Se usamos máquinas que facilitam muito a produção e ajudam a melhorar muito a produtividade elas também têm trabalho por detrás.
Em relação ainda ao decreto-lei nº 217, ele não se limitava a instituir o salário mínimo nacional.
Não. Provisoriamente – e essa provisoriedade manteve-se durante muitos anos - foram congeladas as rendas de casas. Na situação que se vivia era importante. E foram congelados os salários acima de um determinado nível.

Como era então a semana de trabalho?

De 48 horas, antes da revolução. Até 1964, os empregados bancários trabalhavam 35 horas semanais. Entrávamos às 10h00 e saíamos às 18h00. Tínhamos duas horas para almoço e, aos sábados, saíamos às duas horas. Passámos a trabalhar 37 horas e meia em 1964, a troco de uma revisão salarial de 20% que vinha depois de anos e anos de salários congelados. A generalidade das profissões trabalhava entre 42 e 48 horas por semana, geralmente 48 horas por semana. A partir do 25 de Abril, houve foi o reconhecimento das férias e, principalmente, da negociação das férias remuneradas, coisa que não estava garantida na lei e que não era prática em muitos sectores. Isso deu azo a um aumento muito forte na qualidade de vida dos trabalhadores. Houve na altura dezenas de concentrações junto ao Ministério do Trabalho., reclamando o reconhecimento às férias e aos subsídios de férias e o alargamento do tempo de férias, nos casos em que já havia esse reconhecimento, e que isso fosse fixado nos contratos colectivos. Houve um rápido desenvolvimento das lutas reivindicativas, mas depois houve uma alteração das leis que regulamentavam a contratação colectiva e disciplinavam de outro modo a acção dos sindicatos e foram também motivo de protestos. Por exemplo, uma norma estabelecida em Outubro de 1973 e que exigia a aprovação do ministério para que os sindicatos admitissem trabalhadores, portanto, procurando limitar a capacidade de organização dos sindicatos.

Por que é que a criação do subsídio de desemprego foi posterior ao estabelecimento do salário mínimo?

Na altura não houve condições para avançar com isso. A minha proposta era que se avançasse de imediato. Mas aí houve uma questão interna da estrutura do Governo, digamos que houve uma disputa de competências. Não por minha iniciativa, mas houve quem defendesse que certas áreas que seriam naturalmente da área de intervenção do Ministério do Trabalho ficassem sob a alçada do Ministério da Segurança Social. E eu não quero dizer que o ministro dos Assuntos Sociais, Mário Murteira e as secretárias de Estado, entre as quais Maria de Lurdes Pintassilgo, não tivessem bons projectos no quadro das forças do poder, em que os partidos tinham muito pouca força ainda. Mas foi impossível, com aquela correlação de forças, instituir o subsídio de desemprego de imediato.

Como olha para esta abertura de Passos Coelho para discutir um aumento do SMN para os 500 euros em 2015?

Não confio na abertura de Passos Coelho. Confio na luta dos trabalhadores. E na CGTP, que denunciou, e muito bem, que Passos Coelho tenta trocar um mísero aumento do salário mínimo por novas medidas gravosas para os trabalhadores. A CGTP reclama um aumento de 30 euros mensais, um euro por dia. Pode parecer muito pouco, mas quem vive apenas do seu salário sabe que a diferença é muito grande.

Como é que um bancário acaba no I Governo provisório?

Fui indicado pelo partido Comunista. Depois, o general [António] Spínola que exercia as funções de chefe de Estado quis conhecer-me. E a verdade é que, se calhar um bocado equivocado relativamente às minhas características, disse ‘sim senhor, vamos p’rá frente’. Quanto à indicação pelo Partido Comunista, eu era conhecido nos meios sindicais como homem da unidade, alguém que tinha boas relações com todos os sectores, e, dois meses antes do 25 de Abril, fui abordado por um membro da comissão política do Partido Comunista. Creio que o Partido Comunista se preparou para a eventualidade de mudança do regime e que depois me indicou porque tinha boas recomendações a meu respeito. Mas tenho que lembrar que, no dia 30 de Abril de 1974, fui consultado pelo PCP: “O Álvaro Cunhal foi convidado para Ministro do Trabalho, deve aceitar?”. Disse que não devia. Porquê? Porque o efeito daquilo seria voltar os trabalhadores contra o secretário-geral do PCP e isso não nos interessava de forma nenhuma. Quando, passado dias, me disseram, ‘Olha, nós queremos indicar-te, o que dizes?”, respondi-lhes que avaliassem bem, porque eu não era nenhum santo, mas que, se entendessem indicar, sim senhor.
 

Como se dá a saída, a mudança de Governo?


Houve uma série de peripécias, desde manifestações, algumas apoiando o ministro e outras contestando vivamente. Houve manobras que envolveram gente vária, incluindo os chamados serviços de inteligência doutros países, mas criando a fama de que eu teria uma política de terra queimada, de que queria gerar o caos, etecetera. O general Spínola mostrava-se convencido disso, não tinha razão nenhuma, mas tinha-se convencido disso. O que levou uma vez a uma altercação num Conselho de Ministros, uma altercação lamentável porque eu disse que não admitia uma política de terra queimada e manifestei também a minha convicção de que, com tudo o que tinha feito, nunca tinha posto em causa o bom serviço do povo e do país. Disse aquilo de uma forma tão viva que o outro comunista que eu acompanhava no Governo – Álvaro Cunhal – no fim disse ‘Oh, Avelino, é preciso cuidado, não podes falar assim com o chefe de Estado’. E é evidente que nessa situação o general Spínola não estava mais interessado em que eu ficasse.


 


Quem na rua se manifestava contra as políticas do Ministério do Trabalho?


Alguns sectores mais atrasados no plano da organização sindical, como a construção civil, os motoristas de transporte rodoviário, os padeiros, que tinham uma estrutura sindical muito incipiente, procuravam, e provavelmente por acção de elementos reaccionários, perturbar a acção do Ministério do Trabalho. Tive, aliás, um camarada, hoje militante do meu partido, que mais tarde me contou ‘Daquela vez que fomos reunir contigo, a intenção que a gente levava era atirar-te pela janela abaixo’ e eu não estranhava nada que assim fosse.


No caso dos padeiros, queriam que eu publicasse uma portaria impondo um certo nível salarial ao sector. Eu disse que antes ia tentar a via negocial, e que, se houvesse recusa pela via negocial, então prepararíamos uma portaria que teria que ser discutida no Governo. Não ia armar-me em grande chefe. Houve momentos complicados. Os camionistas fizeram uma manifestação de milhares, à porta do Ministério do Trabalho, e eu saí passando pelo meio deles. A certa altura, conheceram-me e fizeram uma roda em torno de mim. Concordei receber uma delegação. O ministério tinha a entrada toda envidraçada, uma multidão contra os vidros acabaria por mandar aquilo tudo abaixo, e os patrões pavoneavam-se provocatoriamente lá dentro. Quando me apercebi, ordenei que os patrões ficassem sempre no 3.º andar e que não tivessem acesso às janelas. Claro que saí pelo meio da multidão outra vez. Nunca saí pelas traseiras. Podia ficar sem comer, mas pelas traseiras não saía. 

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