A pobreza em Portugal e a ponta do icebergue

O fenómeno da pobreza e da desigualdade parece ser cada vez mais tentacular.

Esta convicção continua a formatar muitas políticas públicas e a moldar a decisão de desfazer políticas públicas "mais amigas" dos pobres (as voltas e reviravoltas que o "rendimento mínimo" levou são disso paradigmáticas). De modo a termos uma visão mais justa destes processos, importa historicizar este senso comum, e problematizar as consequências que dele têm resultado.

Já em 1526, no De Subventione Pauperum, o humanista espanhol Juan Luis Vives defendia, à semelhança de muitos outros, que a assistência aos pobres era um dever do poder político, e a pobreza um problema da ordem política e social. Todavia, a responsabilidade do pobre pela sua situação de pobreza devia ser avaliada antes de este ser assistido. Se objecto de assistência, o pobre devia aceitar com gratidão o contrato implícito que se estabelecia entre ele e a sociedade. Caso contrário, devia ser punido, enclausurado, excluído. Ainda nesse século, o teólogo dominicano Domingos de Soto criticou as concepções de Vives. Para Soto, esta linha de pensamento podia conduzir a resultados perversos, já que a exaltação da capacidade e da liberdade de cada homem poder ser aquilo que quisesse ser (o que hoje poderíamos traduzir, em alguns contextos, por meritocracia) podia estimular o desdém e até o ódio por aqueles que não conseguiam alcançar posições preeminentes – caso dos pobres. Questionando a responsabilidade individual que Vives esperava do pobre, Soto propunha que se considerasse, em contrapartida, a responsabilidade da comunidade como um todo. Para Soto, a sociedade tendia a proteger os ricos e a punir os pobres, os quais, devido à sua debilidade social, permaneciam eternamente na dependência dos mais prósperos.

Mais do que as propostas de Soto, foram as de Vives aquelas que tiveram maior ressonância nos séculos seguintes. Numa variante da linha proposta por Vives, Bento Morganti escreveria no jornal O Anonymo, dois séculos mais tarde, que a esmola alimentava a pobreza e que daqui resultava grande prejuízo para o bem comum. Não só os pobres não podiam consumir, como não podiam contribuir para a produção. Morganti defendeu a abolição da ajuda a todos os pobres que pudessem trabalhar, considerando que assim se aumentaria a força de trabalho e a diminuição do "preço das obras". Para se ter mais lucro, "não há coisa que possa conduzir melhor para este fim como é a diminuição da despesa que pode fazer o trabalho das manufacturas" – dizia Morganti –, o que permitiria "aumentar o consumo das manufacturas do reino para fora dele", até porque "a redução do preço pelo trabalho poderia chegar para as despesas do transporte para os países mais distantes"!

É fácil reconhecer, nestes exemplos do passado, algumas das discussões que têm tido lugar, recentemente, a propósito da pobreza e da desigualdade crescentes em Portugal (os últimos dados do INE disso mesmo dão conta). Muitas das políticas públicas desenvolvidas no pós-25 de Abril reenviam, de uma ou de outra maneira, para estas duas grandes maneiras de pensar a pobreza e os pobres, e da tensão entre ambas resultaram soluções divergentes – umas tendencialmente mais individualistas, outras mais comunitárias. Infelizmente, umas e outras, em vez de contribuírem para a redução efectiva da pobreza, apenas mitigaram a situação de alguns (normalmente poucos) pobres. Na verdade, tanto umas quanto as outras raramente criaram as condições suficientes para os pobres escaparem à dependência, saírem da sua situação de pobreza, lutarem pela mobilidade social e alcançarem a igualdade de oportunidades.

O que é que pode explicar que continuemos há décadas (e depois de terem entrado no país milhões em fundos da União Europeia destinados à coesão social) com níveis de pobreza a rondar os 20 por cento da população, e valores maiores quando falamos de mulheres, crianças ou idosos, senão a ausência de políticas públicas verdadeiramente consequentes?

Denunciar o aumento da pobreza em Portugal e tornar presentes os muitos pobres que continuam invisíveis é uma das maneiras de, enquanto sociedade, obrigar os poderes políticos a pensar políticas públicas que, independentemente das ideologias para as quais reenviam, ataquem, de facto, as causas estruturais da pobreza (societais e individuais). Em vez de proporem, apenas, políticas supletivas que evitam a queda dos pobres na miséria.

Instituições de mérito como o Banco Alimentar e muitas outras instituições da sociedade civil representam não apenas a solidariedade dos portugueses, mas também a ponta de um enorme icebergue, o icebergue da falência do projecto democrático português. Elas são a face visível de um sistema político, de elites políticas, e de uma sociedade que, em quarenta anos, foram incapazes de dar resposta a uma das suas questões sociais centrais: retirar os pobres do círculo vicioso da pobreza e reduzir as assimetrias entre ricos e pobres.

Ao invés, o fenómeno da pobreza e da desigualdade parece ser cada vez mais tentacular. Regresse-se ao setecentista Bento Morganti e às suas propostas ironicamente premonitórias. Aplicar hoje as suas soluções (dada a necessidade da "diminuição da despesa", optar pela "redução do preço pelo trabalho") está a conduzir não à diminuição da pobreza (o que ele pretendia), mas sim ao empobrecimento generalizado da sociedade portuguesa.

A refundação do Estado social deve ter em conta estes possíveis (e prováveis) cenários de um país que terá (ou já tem?) não 20 por cento de pobres, mas muito mais. É urgente, pois, que a redução das assimetrias sociais não passe pela generalização da pobreza, retirando à maioria dos portugueses, de uma forma talvez permanente, a capacidade de escolha, mas sim pela redução efectiva da pobreza entre todos aqueles que, escandalosamente, continuam a ser pobres.

Historiadora, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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