“Sérgio Godinho é quase uma figura mitológica da infância”
Durante três noites Sérgio Godinho apresenta o espectáculo Liberdade no Teatro São Luiz. Para final de noite, programou concertos de autores nascidos depois do 25 de Abril: Nuno Prata, Joana Barra Vaz, Capicua e They’re Heading West.
A liberdade já andava a passar pelas canções de Sérgio Godinho desde Maré Alta, tema final do álbum de estreia Os Sobreviventes (1971). Mas era então uma liberdade sonhada, ainda que intuída na realidade. Passados três anos, já depois do 25 de Abril e de Godinho deixar o Canadá, para onde tinha emigrado com a mulher Sheila e se tinha juntado a uma companhia de teatro, o seu regresso a Portugal aconteceria enquanto actor na peça Liberdade, Liberdade, ao lado de João Perry e Maria do Céu Guerra no Teatro Villaret. Nesse mesmo ano, lançava o álbum À Queima-Roupa, com Liberdade, a canção, à cabeça, dizendo que “só há liberdade a sério quando houver / a paz, o pão, habitação, saúde, educação” e “quando houver liberdade de mudar e decidir”. A liberdade não era já do sonho, era exigente, a querer uma forma concreta.
É precisamente essa canção, Liberdade, que é elevada a mote do pequeno ciclo de concertos de Sérgio Godinho que na quinta-feira arranca no Teatro São Luiz, em Lisboa, enquanto palavra e conceito central na sua vida e nas suas canções. E é por isso que a sua interpretação constitui a única condição para que Nuno Prata (hoje), Joana Barra Vaz (sexta-feira), Capicua + They’re Heading West (sábado) se apresentem, a convite de Godinho, no Jardim de Inverno do mesmo teatro, às 23h, logo a seguir aos concertos do mestre-de-cerimónias na sala principal. Cada um deles, todos nascidos depois da edição original do tema, terá de apresentar a sua versão desta Liberdade.
Nuno, Joana, Ana (Capicua) e Francisca (They’re Heading West) pertencem a uma geração em que as canções de Sérgio Godinho estiveram sempre presentes, a tocar em fundo, como se não houvesse país sem elas. Tanto assim, assegura Francisca Cortesão, que estas canções a moldaram “como pessoa, na maneira de falar e na maneira de compor”. “Faz parte da língua falada da minha família, do meu grupo de amigos. Quando era miúda cantava músicas dele nos campos de férias. É uma música que faz parte das nossas vidas, está lá e sempre esteve”, acrescenta.
Sérgio Godinho é uma referência de tal forma omnipresente nos nascidos no pós-25 de Abril que parece ser um alicerce natural, inquestionável para a ideia de uma cultura portuguesa. Joana Barra Vaz afirma que “não dá para ter uma memória de crescer sem conhecer as suas canções”. “Às vezes tenho a sensação que ele faz parte da família, porque realmente estava lá em casa quase todos os dias”, encontrando a porta aberta através da série infantil Os Amigos de Gaspar. Também para Capicua, Godinho “é quase uma figura mitológica da infância”. “Os Sobreviventes foi o disco que mais ouvi em pequenina. As minhas primeiras memórias musicais têm que ver com esse reportório do Sérgio Godinho, do José Mário Branco, do Fausto, do Zeca Afonso, porque os meus pais ouviam muito.”
Só para Nuno Prata, na verdade, a revelação foi um pouco mais tardia, chegada a adolescência e com os Ornatos Violeta já em actividade. Embora as canções de Sérgio Godinho não lhe fossem obviamente desconhecidas, foi através dos discos da mãe do vocalista Manel Cruz, pedidos de empréstimo durante um longo período, que foi puxado para dentro daquele universo. “O Manel tinha três discos em casa, fundamentais – Campolide, Canto da Boca e Pano Cru”, lembra. Coincidindo com uma altura em que começou a prestar a atenção às letras, Nuno descobriu na canção Mudemos de Assunto algo de novo na sua vida. “Ouvi-a como se tivesse sido eu a escrevê-la. Nunca tinha tido essa sensação até à altura. Foi isso que iniciou esta relação que tenho com as músicas do Sérgio Godinho, esta empatia, esta afinidade em que podia ser eu a escrevê-las”. “Parece que está a dizer uma verdade que nós ainda não sabemos, mas ele já sabe e está a fazer a gentileza de abrir uma janelinha para o nosso autoconhecimento”, diz Joana Barra Vaz. E a povoar pessoas com estas imagens que marcam e voltam ciclicamente, acrescenta: as descobertas da infância em O Primeiro Gomo da Tangerina, a beleza ferida e geradora de vida dos recomeços em O Primeiro Dia ou simplesmente os cabelos a boiar entre as algas em A Noite Passada.
Palavras elásticas
Em todos os casos, como é natural, a utilização imaginativa, narrativa e elástica dos versos por Sérgio Godinho funcionou como fortíssimo factor de atracção e deslumbramento. Para Capicua, formada musicalmente pelos “cantautores de Abril” e seduzida mais tarde por um hip hop português de língua afiada e apontada para a crítica social, “a música veio sempre associada à palavra”. Por isso, músicos como Sérgio Godinho revelaram-se-lhe desde cedo como aqueles que “davam opiniões e faziam da sua palavra uma ferramenta para a mudança das mentalidades e para inspirar a mudança social e política num contexto especialmente delicado”. “E aquilo de que gosto na minha música”, admite, “é brincar com as palavras”. Algo facilmente reconhecível em Sérgio Godinho.
Até porque, e Capicua não o ignora, as canções de Sérgio Godinho estão muito longe de se barricar em temáticas políticas e sociais. E mesmo quando faz aquilo a que Joana Barra Vaz chama “crónica do que somos”, fá-lo com um peso que oferece outros subtextos. “Há uma leveza por vezes aparente que penso que é muito particular do universo do Sérgio”, diz a cantora, “e depois parece quase corriqueiro”. Toca nos dias, nos gestos, nos pequenos nadas, ao mesmo tempo que constrói textos que convidam à reflexão e à acção. “O Sérgio Godinho não é só o cantor do Liberdade, é também o cantor de muitas histórias de amor e histórias do quotidiano”, sublinha Francisca Cortesão, que teve já uma das suas canções adaptada e interpretada por Godinho no último álbum deste, Mútuo Consentimento.
O paralelo que traça com a obra de Godinho é precisamente este das histórias íntimas, tanto que ao assinar com João Correia (também dos They’re Heading West) e B Fachada a revisitação integral em disco do álbum de estreia de Godinho, Os Sobreviventes (que repetirão em concerto a 25 de Abril, na discoteca Lux), escolheu cantar “música menos políticas, mais pessoais”. “Não que não me identifique com aquilo que o Sérgio diz – na maior parte dos casos identifico-me muito. Só acho que não é para aquilo que a minha voz serve. E não me apoquento com isso, porque há muita gente na minha geração a fazer isso bem”.
O exemplo perfeito está mesmo à mão. Francisca cita a rapper Capicua, com quem partilhará o concerto de sábado: “É incrível estar com ela em palco quando está a dizer o poema da Jugular [da autoria de Capicua], que acho soberbo e das coisas mais bem escritas e lógicas que se escreveram nos últimos tempos.” Também Nuno Prata diz ter-se reconhecido de imediato na obra de Sérgio Godinho porque “ele dizia tudo quase como se falasse, como se estivesse numa conversa”. As palavras nas letras de Sérgio Godinho não soam amputadas para caber na música; pelo contrário, as harmonias surgem distendidas para que a frase caiba toda, sem prescindir de sentidos às mãos da tirania das canções. Liberdades Poéticas, escreveu Godinho para Mísia, rimando com “frases assimétricas”. “A característica de intervenção e de protesto”, diz Nuno Prata acerca das suas canções, “encontro-a sobre mim próprio – pode ser comum a outras pessoas para tentarem perceber os seus defeitos e as atitudes perante si e perante o mundo”.
Caderno em branco
Daí que Capicua, a mais abertamente política na sua criação musical dos quatro convidados de Sérgio Godinho (e que tinha apresentado a 25 de Abril de 2013 com os They’re Heading West uma versão de Liberdade na Casa Independente), reclame precisamente a liberdade de “cada um fazer a música que quer e sobre aquilo que quer”. “Também gosto de cultivar isso em mim, também gosto de falar de amor, passarinhos, política, sexo, o que for. Tendo liberdade de opção, tenho uma responsabilidade ao mesmo tempo. E prefiro utilizar essa oportunidade de uma forma que considero que tenha mais impacto positivo e que possa contribuir para inspirar as pessoas a serem mais activas e felizes.” Estejam a cantar sobre a recusa – a palavra “não” que tanto surge em Nuno Prata –, o “ir e voltar” – que não larga as canções de Barra Vaz – ou o amor – que arranja sempre chave para se esgueirar para os versos de Francisca Cortesão –, a suprema liberdade é, como diz ainda Capicua, “sentir que há um caderno em branco eterno de coisas que se podem escrever e histórias que se podem contar”. E pode, portanto, ser reclamada e reinventada em cada nova letra.