Putin não invadirá a Ucrânia, fará pior

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Moscovo tem a sua alternativa: impor referendos regionais que consagrariam um sistema federal e a autonomia das regiões, inclusive em política externa, "balcanizando" a Ucrânia. Pretende acentuar a polarização entre Leste e Oeste e convencer os ucranianos de que o seu modelo federal será a solução mais realista e "pacífica". Putin sabe que americanos e europeus têm escassos meios para anular a ofensiva política russa.

O que aconteceu em Donestk, Kharkov ou Lugansk não teve uma dimensão de massas. É um sinal. Seguir-se-ão meses de crescente tensão. Os EUA e a UE acusam Moscovo de desestabilizar a Ucrânia e de orquestrar as manifestações pró-russas. Moscovo intima Kiev a não usar a força no Leste sob risco de desencadear uma "guerra civil".

Putin tentará estrangular a economia ucraniana com a subida do preço do gás (um aumento de 80%) enquanto os investidores estrangeiros deixaram de ter vontade de correr para Kiev. O país está à beira da bancarrota.

O nacionalismo ucraniano — e anti-russo — afirmou-se nos últimos meses mas não em todo o país, que continua a ser extraordinariamente frágil. Pareceu emergir uma nova elite social, mas não teve ainda tradução política. A classe dirigente é a mesma de antes — uma oligarquia corrupta — e as instituições não funcionam. Após a perda da Crimeia, o governo teve de recorrer a oligarcas para controlar o Leste do país. Hoje, é Rinat Akhmetov, o maior dos oligarcas, que está a tentar "apagar o fogo" em Donetsk.

Em termos económicos e militares Moscovo está em inferioridade perante Washington. Mas tem tropas na fronteira, enquanto os americanos estão "longe" e os europeus "desarmados". Kiev não tem a cobertura da NATO. A "vantagem" de Moscovo é ter muito a mais a perder na Ucrânia dos que os ocidentais, o que incentiva Putin a correr riscos mesmo perante sanções pesadas — o que está longe de ser garantido. A Ucrânia é vital para o seu grande projecto estratégico — a construção da União Euro-Asiática. É, ainda, um "estado-tampão" perante a NATO e a influência da UE.

Vários analistas denunciam agora "a incultura política e a superficialidade da moderna diplomacia ocidental" que não soube antecipar a reacção russa e festejou a destituição de Viktor Ianukovich no dia seguinte à assinatura do compromisso de 21 de Fevereiro, subscrito por Ianukovich e pela oposição e "testemunhado" pelos ministros do Negócios Estrangeiros da França, Alemanha e Polónia e por um enviado de Moscovo.

"Por que é que América não compreende Putin?" — pergunta a historiadora e ex-sovietóloga americana Angela Stent, outrora conselheira no Departamento de Estado. Porque deixou de pensar a Rússia em termos históricos e "os especialistas de democracia e economia" enviados para Moscovo nos anos 1990 pensavam em quadros estranhos à realidade russa. Depois, os think tanks voltaram-se para China e para o mundo árabe. Por isso, tal como Merkel, a América não percebe o mundo em que vive Putin.

Morrer por Kiev?
Ao incentivar a "mudança de regime" em Kiev, a UE assumiu a responsabilidade de ajudar a reconstruir a Ucrânia, política e economicamente. Cumprirá ou poderá cumprir? A Polónia e a Suécia lideram a política de intervenção e ajuda maciça. E a Alemanha ou a França?

"A chanceler Merkel tem de adoptar uma atitude de firmeza e sem ambiguidade perante a Rússia e isto significa pesadas sanções", escreve Judy Dempsey, do think tank Carnegie Europe. "Não será tarefa fácil. Na opinião pública alemã há um consenso de que a Ucrânia é difícil e talvez não valha a pena defendê-la." Os países europeus não estão a agir em conjunto "porque pensam que o esforço não vale a pena".

O americano Walter Russell Mead convida Washington a optar entre "voltar as costas" à Ucrânia, o que significará "um amargo fracasso ocidental" ou lançar-se numa "dispendiosa, difícil e talvez condenada operação de nation-building", que Putin tem meios para anular.

A prazo, a política de "confronto estratégico" de Moscovo perante o Ocidente vai sair-lhe muito cara porque bloqueará a modernização da Rússia, observa o analista russo Dmitri Trenin, que prevê um conflito por muitos anos.

Concorda Dempsey: "A Europa, e mais tarde a Rússia, vão pagar um alto preço."

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