O grão que está a mudar o Brasil
O agronegócio é o sector-estrela da economia brasileira. Há mesmo quem fale em milagre. Mas também há sombras negras.
É noite e chove torrencialmente. O carro avança com mil cautelas porque mal se consegue ver a estrada por entre a dança do limpa-pára-brisas em frente aos nossos olhos. Vamos atentos às indicações para Campo Novo do Parecis, estado do Mato Grosso. Estamos em pleno território do agronegócio, terra da soja e do milho e cenário de uma das revoluções mais impressionantes do Brasil de hoje. Mas por enquanto só vemos chuva.
A certa altura, começam a surgir de ambos os lados da estrada enormes vultos. São camiões e camiões, centenas deles, estacionados nas bermas e cobertos de uma lama vermelha, a cor da terra que nos rodeia. Mas é já quase 1h00 da manhã, os condutores estão a dormir e o escuro da noite não nos deixa ver muito mais. Só no dia seguinte, quando nos fazemos de novo ao caminho — a chuva parou, entretanto —, é que nos apercebemos dessa paisagem que domina muito do território do Mato Grosso, maior produtor brasileiro de soja: campos e campos verdes, a perder de vista, soja, soja, soja até onde o nosso olhar alcança.
Quase não se vêem pessoas. Há, de vez em quando, uma máquina a trabalhar, e, ao longe, entre um grupo de árvores isoladas no meio do mar de soja, uns silos meio escondidos. E há bombas de abastecimento (mais etanol do que gasolina por estes lados) e camiões cobertos de terra vermelha.
Viemos até aqui para um encontro organizado pela Fundação Mato Grosso (Fundação MT), uma organização privada de investigação em técnicas de cultivo e desenvolvimento de sementes, que apoia os agricultores locais. Durante o dia há visitas dos técnicos aos campos para avaliação da produção e à noite está marcado um jantar e uma sessão de esclarecimento, em que serão apresentadas as previsões meteorológicas para o ano e discutidos os problemas mais comuns que os produtores enfrentam.
No meio do verde, vê-se uma pequena tenda da Fundação MT, com algumas pessoas reunidas. Há café e biscoitos. Mas, antes de entrarmos, alguns dados para percebermos a dimensão do que nas últimas duas décadas aqui tem acontecido — uma verdadeira revolução cujos protagonistas, sobretudo produtores e investigadores, vamos conhecer em breve.
Nas bancas de jornais por esses dias (esta reportagem realizou-se em Janeiro) está à venda a revista Globo Rural sobre as tendências para 2014, com o título: “Agronegócio decola”. E ainda, na capa: “Agricultores entram em campo para colher 200 milhões de toneladas de grãos, a maior safra da história. Produção de soja chega a 90 milhões de toneladas e ultrapassa a dos Estados Unidos”. (Os números relativos à soja foram nas últimas semanas revistos em baixa para 85-87 milhões, com alguns estados afectados pelo calor e seca e, no caso do Mato Grosso, pelas chuvas, que atrasaram a colheita.)
Pode haver sectores da economia brasileira que se mostrem mais hesitantes, mas o agronegócio não deixa margem para dúvidas: está pujante. Todos os anos, a colheita é maior e superam-se os recordes anteriores. Bastou uma década para que a safra aumentasse em 70%, o que, segundo os especialistas, não se deve tanto ao aumento da área cultivada (que cresceu 18%, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimentos/ Conab), mas aos ganhos de produtividade conseguidos graças à pesquisa científica desenvolvida em primeiro lugar pela Embrapa — Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, pertencente ao Estado — e depois por empresas privadas como a Fundação MT.
A outra grande vantagem conseguida por esta aposta na investigação foi a possibilidade de fazer duas safras em territórios como o de Mato Grosso. Após a colheita da soja, os campos são plantados com milho (ou em alguns casos com algodão) e produzem, também com valores muito elevados, antes da época da próxima sementeira de soja. Ou seja, os campos nunca param e a produção também não. A segunda safra, a que os brasileiros chamam “safrinha”, já é muitas vezes superior à primeira.
Esta “galinha dos ovos de ouro” tem feito enriquecer muitos produtores. É o caso de Eraí Maggi, 54 anos, natural do Rio Grande do Sul, que, conta a revista Fortune, construiu a sua fortuna no Mato Grosso, em 2007 tornou-se o maior produtor de soja do Brasil, ultrapassando o seu primo, o senador Blairo Maggi, e é hoje o “rei da soja”, o maior produtor de grãos do mundo.
Já em 2010, um relatório da Economist Intelligence Unit, indicava que, fazendo crescer a sua área agrícola, o Brasil poderia tornar-se a maior potência mundial do agronegócio e aumentar substancialmente as suas exportações, dirigidas em primeiro lugar para a China.
Como é que o Brasil chegou aqui? Até onde pode ir? E com que custos? Foi com estas perguntas que entrámos na tenda montada pela Fundação MT à beira da estrada, junto a um imenso campo de soja.
“Cheguei há uns 15 anos”, conta Francisco Soares, hoje presidente da Fundação MT, e a quem todos tratam por Chico. “E há 15 anos o Mato Grosso plantava 2,8 milhões de hectares. Hoje planta 8,2 milhões. A área praticamente quadruplicou nesses 15 anos. A parte climática aqui é fantástica, temos chuva no momento certo, calor no momento certo, o risco de perda de parte da colheita é muito pequeno comparado com outros estados. E o agricultor soube aproveitar isso.”
E, no entanto, o Mato Grosso era anteriormente terra de cerrado, coberto pela vegetação característica deste tipo de território, e com um solo considerado pobre, sem aproveitamento para a agricultura. “Sim, o solo era pobre, ácido, mas houve um trabalho de aplicação de calcário e foi melhorando.” Mas, para Francisco Soares, o grande milagre não teve que ver com o solo, mas sim com as sementes. “O desafio maior foi adaptar uma variedade, a soja, que tem origem num clima temperado, para um clima tropical.” Todos reconhecem o trabalho excepcional feito pela Embrapa na investigação que conduziu até aqui — trabalho que é hoje também desenvolvido por entidades como a Fundação MT.
Um dos homens que construíram esse milagre, e que é considerado um dos “pais da soja” no Brasil, é o japonês José Tadashi Yorinori, engenheiro agrónomo e fitopatologista, que encontramos também num dos campos de soja, observando atentamente, com uma lente, o estado das folhas para perceber até que ponto elas estão a ser afectadas por ferrugem.
Rosto de japonês, maneira de falar de brasileiro, explica: “Estamos aqui numa região do cerrado tropical brasileiro em que, pela própria formação geológica, o solo é um dos mais carentes em nutrientes. Mas graças à pesquisa que foi realizada, principalmente desde a década de [19]60 para cá, aprendemos a administrar essa deficiência. Com um bom entendimento do solo e do ambiente, do regime de chuvas, hoje o Brasil está obtendo a maior produtividade de soja do mundo num solo que originalmente teria zero de produtividade. Hoje estamos almejando chegar, até exagerando um pouco, às seis toneladas por hectare.” Acena com a cabeça, satisfeito: “De zero para seis toneladas!”
Os números são impressionantes. Continua Tadashi: “Quando comecei a trabalhar no Brasil, em Dezembro de 1970, o país tinha como área cultivada um milhão de hectares e produzia mil quilos por hectare. Hoje temos quase 30 milhões de hectares e estamos produzindo, no Mato Grosso, perto de 3500 quilos por hectare, e querendo chegar aos 6000.”
O aumento de produção pode ser conseguido sem mais desmatamento, garante por seu lado Wanderlei Dias Guerra, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “No Brasil, temos uma grande vantagem, que é a possibilidade de expansão sem desmatar porque existem áreas de pastagem que estão muitas vezes degradadas e que podem entrar no sistema produtivo com a integração entre a lavoura e a pecuária.”
Milagre com sombras negras
Mas este cenário de “milagre” tem sombras negras. O enorme crescimento da produção só é possível com o aumento do uso de agroquímicos, pesticidas e fertilizantes. Os números animam algumas indústrias, mas preocupam os ambientalistas. Ainda segundo dados da Globo Rural, registou-se no último ano um crescimento de 8% da venda de “defensivos agrícolas”, ou seja, pesticidas. “Nos últimos anos, o apetite da lagarta Helicoverpa armigera ampliou em muito a necessidade do controlo químico nas lavouras de soja, milho e algodão — as mais afectadas pela voracidade do animal”, lê-se num artigo.
“Reduzir o agroquímico, infelizmente, não é possível”, diz o presidente da Fundação MT. “Tem uma busca de melhoramento genético, todo um trabalho tentando sair do controlo químico, mas é difícil. Eu não vejo cultura de soja no Brasil sem controlos químicos e biotecnologia. Enquanto a soja existir, acredito que o agroquímico vai ter de existir.”
Por seu lado, o Relatório dos Direitos Humanos e da Terra 2013 denuncia: “O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos, mas é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Usou 828 milhões de litros em suas lavouras em 2010 e o Mato Grosso é o maior produtor de soja, milho, algodão e bovinos, porém é também o campeão nacional de uso de agrotóxicos.” O Estado consumiu em 2010 “cerca de 113 milhões de litros de agrotóxicos”, com consequências negativas para a natureza e a saúde humana.
Um dos problemas que levam ao uso dos químicos tem que ver precisamente com a existência de duas safras. “Se isso não for bem administrado — e muitos estão pecando nesse aspecto —, estamos gerando comida para as pragas e doenças”, explica Tadashi. “Desde o ano passado que estamos brigando com a lagarta Helicoverpa armigera, que é uma praga da soja e que não existia há dois anos.”
Apesar de o cultivo soja/milho ser uma rotação de culturas, na prática tem os efeitos de uma monocultura, o que explica que as pragas se desenvolvam e se tornem resistentes. E a resposta tem de ser com os defensivos químicos. A situação preocupa o especialista japonês: “Estamos usando exageradamente uma grande quantidade de químicos para controlo de pragas, doenças ou ervas daninhas.” O Estado, defende, deveria apostar na investigação pública para encontrar alternativas. “É possível usar menos agroquímicos. Mas hoje grande parte da assistência técnica é dada pelos vendedores de insumos [sementes, pesticidas e fertilizantes] e por isso é direccionada para os interesses comerciais.”
E há, claro, a questão dos transgénicos. Num dos campos que visitámos, um representante da Agropecuária Maggi explica que 20% da produção que temos à frente, ou seja, cerca de 300 mil hectares, é de “soja livre”, não transgénica, e na próxima safra é possível que a percentagem atinja os 50%. Mas esta é uma tendência muito recente e que tem sido encorajada pelo facto de o mercado europeu querer importar sobretudo soja não transgénica.
Existe, contudo, uma outra razão, explica o responsável: a soja livre está a revelar melhores índices de produtividade do que a transgénica, e a mostrar-se mais resistente a algumas pragas. E se dantes havia poucas sementes livres no mercado, agora começa a ser um pouco mais fácil encontrá-las e por isso mais agricultores podem optar por elas.
“A informação nova que estamos tendo confirma que os transgénicos são mais susceptíveis a pragas”, diz também Tadashi. “Mas isso não chega ao público porque o poder económico do sector dos transgénicos e herbicidas é tão forte que não permite a divulgação oficial dessas informações.” O especialista alerta que “já existem estudos que mostram que as estatísticas de internamento e os níveis de doença aumentaram muito nos EUA de 1995 para cá, quando começaram a usar os transgénicos. Só que a cada ano está mais difícil e mais caro ter acesso a convencionais”.
Francisco Soares, da Fundação MT, calcula que a soja convencional venha a representar uns 15 a 20% do total da produção, mas não mais do que isso. “Existe um mercado exclusivo para ela na Europa e em países asiáticos como o Japão. De resto, todo o mundo come transgénico, mesmo quem não sabe que está comendo.” Relativamente ao debate sobre a produtividade, mostra-se prudente: “Acredito que a primeira geração de transgénicos na soja reduziu um pouco a produtividade, mas daqui para a frente vai melhor.”
O tema dos químicos e transgénicos é, naturalmente, polémico. Recentemente, o Ministério Público Federal decretou a suspensão da utilização de nove princípios activos presentes em 180 dos agrotóxicos autorizados no país, entre os quais o glifosato — que, explica Tadashi, “mata tudo” (pragas mas também as próprias plantas), mas que funciona com as variedades que a manipulação genética tornou resistentes. Esta soja transgénica não morre, mas por causa do glifosato absorve menos nutrientes e por isso é mais pobre. A decisão do Ministério Público foi recebida com indignação pelos agricultores, e o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento foi taxativo: “Se banirmos o glifosato, vamos simplesmente banir a agricultura. Não tem como fazer agricultura sem [o herbicida].”
As alternativas de Wanderlei
Wanderlei Dias Guerra tem uma visão um pouco diferente. “Existem alternativas, como o manejo integrado de pragas, com a libertação de inimigos naturais. Isso está sendo cada vez mais utilizado no país, até porque ninguém tem interesse num uso em larga escala de produtos químicos, que tornam as pragas mais resistentes.”
Quanto aos transgénicos, reconhece que houve uma grande pressão das multinacionais que os fabricam para que os agricultores os usassem, mas lembra que no Brasil surgiu o “movimento soja livre” e que a Embrapa desenvolveu sementes convencionais, o que dá hoje aos produtores opção de escolha. “Tem até a questão estratégica e de segurança nacional: os produtores têm consciência de que não podem ficar nas mãos de uma multinacional.” Mas sublinha que quem trabalha a terra aqui não tem uma visão negativa dos transgénicos. Pelo contrário, “a gente vê-os como benéficos porque reduzem a utilização de químicos”.
Segundo dados do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia, o Brasil ocupa o segundo lugar entre os maiores utilizadores de transgénicos de grãos e fibras, atrás dos Estados Unidos. Em 2013, foram cultivados 40,3 milhões de hectares de soja, milho e algodão transgénicos no território brasileiro.
Apesar disso, há quem olhe o futuro com optimismo. Tobias Ferraz é repórter da rádio Terra Viva e está no Mato Grosso para acompanhar o trabalho da Fundação MT nas vésperas do início da colheita. “Há no Brasil a busca por uma agricultura comercial cada vez mais sustentável. Hoje temos fazendas com um nível de sustentabilidade muito interessante”, diz, mostrando-se convicto de que o país está a caminhar para a redução do desmatamento (e lembrando que “quem desmata não é produtor rural, é madeireiro, e quem compra a madeira ilegal são os EUA e a Europa”).
É para discutir estas e outras questões que a Fundação MT promove os seus encontros. À noite, numa sala de eventos em Campo Novo de Parecis, estão vários produtores locais, muitos deles jovens, com ar de cowboys, embora o negócio aqui seja mais de plantas do que de animais. Um deles é o enérgico Marcos Maba, 31 anos, produtor de soja. “A propriedade já pertence à família há um certo tempo. Nós somos do Sul do país e a gente viu aqui no Mato Grosso uma nova oportunidade, uma maneira de expandir as áreas. O clima aqui é perfeito e as extensões de terra também colaboram”, conta, explicando que têm uma propriedade de 1200 hectares, além de outras mais acima no estado. “Somos médios produtores.”
Diz-se optimista e “esperançoso”. “A gente acredita muito na agricultura e no potencial da região.” Do que a sua propriedade produz, exportam cerca de 90% da soja, enquanto o milho é consumido mais no Brasil. O único senão é que na safra anterior o preço do milho caiu bastante, mas este ano estão a apostar na recuperação. Têm conseguido aumentar a produtividade “com a adopção de novas tecnologias, de novos cultivares, de produtos novos, adubação”, mas “os custos estão subindo praticamente na mesma proporção”.
Com a transformação de uma paisagem de cerrado em terrenos agrícolas, e as grandes extensões de que fala Marcos, o Mato Grosso atraiu muitos agricultores de outras regiões do Brasil onde já não era possível encontrar terra. Mas nem todas as histórias correram tão bem como a da família Maba.
Um mundo de poucos grandes produtores
Israel Vendrame é de São Paulo e chegou ao Mato Grosso há 32 anos. Primeiro veio fazer assistência técnica, depois venda de químicos, sementes e fertilizantes, e em 1999 decidiu lançar-se como produtor de soja, arroz e feijão. Encontramo-lo também no meio de um campo de soja, junto a uma das tendas da Fundação MT.
Tem um ar calmo e uma voz pausada que ao princípio não deixa perceber que é um homem com preocupações. “Nesses 32 anos acompanhei a mudança do Mato Grosso, a retirada do cerrado e a implantação de culturas, inicialmente de arroz, depois soja e algodão e, na segunda safra, de milho.” A área cultivada abrange hoje 36% do território do estado, enquanto 64% é ainda área preservada.
Mas esta mudança na paisagem não foi acompanhada pela correspondente chegada de gente. Vieram, é verdade, produtores atraídos pelo novo negócio, mas isso não se traduz em grandes números. “Somos hoje um estado de três milhões de habitantes e éramos há 30 anos cerca de dois milhões”, diz Israel. “E isso é preocupante.” Ou seja, o mundo da soja é feito de poucos grandes produtores, com terrenos enormes.
Soluções? “Talvez a limitação do tamanho das áreas a ser cultivadas fosse positivo. É algo que eu gostaria que fosse discutido.” Apesar de ter 1500 hectares, Israel considera-se um produtor “médio para pequeno”. E, o que é mais grave, “em extinção”. Continua, no mesmo tom calmo. “Se eu não tiver muita eficiência, dentro de cinco anos, estarei totalmente fora do negócio”..
Mas a soja, com os seus recordes de produtividade, não é uma mina de ouro? Nem tanto, explica Israel. “Os preços são sazonais, este é um mercado de commodities [mercadorias] e a gente depende de essas commodities estarem sempre com um preço de médio a bom. Passei uma crise entre 2004 e 2006, quase fui banido do sistema, e há uns três anos que estou recuperando. Mas sou um produtor endividado e praticamente insolvente, o meu património não cobre as minhas dívidas.” E deixou de ter acesso a crédito bancário.
Os problemas começaram em 2004. “Tomámos empréstimos com dólares, o dólar caiu, o diferencial da dívida foi convertido em reais e nós fomos executados. Estamos tentando sair desse imbróglio.” Apesar disso, diz que está optimista. Acabará por deixar a agricultura daqui a uns dez anos. “Vou embora sem uma dívida. Talvez sem o património, talvez mesmo sem o veículo, mas só vou embora depois de saldar todas as minhas dívidas.”
O seu caso está longe de ser único, garante. “Vinte por cento dos produtores já saíram totalmente do sistema, estão marginalizados, trabalham noutros estados ou estão nas cidades, noutras actividades. Dos que actuam como produtores, 40% estão na mesma situação que eu, plantamos com o crédito de terceiros ou com a ajuda de outros produtores que nos dão a matéria-prima e um pouco de dinheiro para a manutenção, e que têm assegurada parte da nossa produção.” Por isso, aconselha a quem vem para o Mato Grosso investir na soja que, acima de tudo, “não dependa de financiamentos”.
Aqui, nesta paisagem de campos verdes, fazem-se e desfazem-se fortunas. Se os mais pequenos podem cair no ciclo do endividamento, como Israel, e têm dificuldade em sair dele, quem tem meios próprios pode chegar a ter uma dimensão gigantesca e ficar muito, muito rico.
Mas mesmo para esses há uma dificuldade no horizonte, que tende a crescer, e que tem que ver com as centenas de camiões que vimos parados à beira da estrada, cobertos de terra vermelha, na noite em que chegámos a Campo Novo do Parecis. É que o Mato Grosso mudou muito nas últimas décadas, mas as estruturas não mudaram e o escoamento dos milhões de toneladas de grãos é um autêntico pesadelo.
Este é um ponto em que todos parecem de acordo. “O país está produzindo muito e, infelizmente, ainda temos como base uma matriz rodoviária”, reconhece Wanderlei Dias Guerra. “Mas temos várias outras opções, rios importantes e as ferrovias estão chegando aqui, bem próximo da zona de produção.” Só que é preciso investimento nestes aspectos logísticos. E é esse o apelo que o responsável lança: “É importante que outros países voltem os olhos para nós e vejam a oportunidade de investir aqui, na logística.”
Mas se o responsável do ministério mantém um tom positivo, de outros lados as críticas chegam particularmente duras. “O nosso principal problema é a logística”, afirma o jovem produtor Marcos Maba. “É o principal gargalo de todo o Mato Grosso. E quanto maior for a produção, maior vai ser a dificuldade para a gente a tirar de dentro da fazenda e levar até aos portos e ao principal mercado, que é o externo.”
“É a maior praga do Mato Grosso e do Brasil”, confirma Francisco Soares, da Fundação MT, que diz que quando chegou ao estado, há 15 anos, as estradas que existiam eram as mesmas de hoje. “É preciso melhorar a infra-estrutura do estado. O que se perde aí de valor financeiro, com essas péssimas rodovias, péssimos portos… São uns heróis os produtores que conseguem produzir aí e ainda ter competitividade no mercado internacional.”
Israel Vendrame é ainda mais radical: “Nós vamos ter um apagão”, avisa. “Plantámos milhões de hectares e queremos aumentar ainda mais, sem condição alguma de escoar. Temos hoje milho armazenado em silos que não foi retirado, estradas péssimas, alto custo, nomeadamente de combustível.” E acusa: “O Estado é completamente ausente, mais atrapalha do que ajuda. Na nossa actividade, a política está só para tirar as vantagens.”
Despedimo-nos do Mato Grosso numa manhã de sol, percorrendo a mesma estrada que fizéramos na noite de chuva. À nossa volta, os campos parecem mais verdes do que nunca. Os grandes engarrafamentos ainda não começaram porque a colheita está a decorrer. Mas os camiões aguardam, impávidos, à beira das estradas. Se a situação logística não mudar, a terra do milagre da soja enfrenta sérios problemas. Um dia a galinha dos ovos de ouro pode entupir com a sua própria riqueza.